quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A História De Vovó Cambinda






Arriou Na Linha Das Almas,
Cambinda De Fé Oi Babá,
Velha Feiticeira Lá Da Guiné,
Vem De Muito Longe Pra Curar Filhos De Fé.

Vovó Cambinda Tem Sua Guia,
Trabalha De Noite E Reza De Dia.
Vovó Cambinda Quer Encruzá,
Ponto De Pemba No Meu Gongá.

Agô Pro Povo D'Angola,
Agô Pro Povo De Mina,
Saravá As Santas Almas,
Agô Pra Vovó Cambinda.


    Vovó Cambinda é uma Preta Velha Amada por todos que amam a
Umbanda. Todos tem nela um exemplo de amor e caridade, pois ela
própria é assim.

    Com seu jeito humilde e dócil, ela conquista a confiança de
todos, fazendo assim que seus consulentes abram o coração de uma forma
extrema, sem receios, sem vergonha de se expressar, sem medo, apenas
com o dar e receber um carinho grandioso, como se fosse um neto ao
lado de sua avó preferida.

    Essa vovó sempre atenta a todas as palavras, escuta tudo
calmamente, fazendo com que todos os "grandiosos problemas" se pareçam
apenas minusculos fatos aos olhos de otimismo de nossa amada Preta
Velha, e passando assim aos seus amados "netos e netas", para que eles
reajam com mais força e mais fé a qualquer obstáculo na caminhada que
as vezes pode parecer tão difícil.

    A senhora Cambinda é uma das Pretas Velhas mais conhecidas na
história da Umbanda. Em diversos Terreiros podemos encontrar uma velha
com o mesmo nome, pois como a nossa Velha Cambinda fora reconhecida e
respeitada por várias gerações de negros pelos seus atos de caridade,
muitos desses negros colocavam o nome de Cambinda em seus filhos para
homenagear a nossa amada Vovó Cambinda.

    Vamos falar um pouco dessa Preta Velha, e saber como foi que ela
alcançou tamanho respeito.

    Cambinda era uma menina ainda quando fora tirada da Guiné, sua
terra natal. Foi trazida para o Brasil nos meados do século XVI
em navios negreiros, que eram conhecidos como "Tumbeiros", e tinha
esse nome pois praticamente a metade dos negros que nele vinham,
morriam antes do findar da viagem.

    Cambinda e seus pais vieram em um desses navios, e por meses
viveram amontoados nos porões imundos, repleto de cadáveres e negros
adoentados, sem comida e água suficiente a todos.

    A Mãe da menina Cambinda, com seu jeito carinhoso, doce e
caridoso, abraçava a menina e lhe falava baixinho:

"Não tenha medo, logo logo tudo isso vai terminar. E eu prometo estar
sempre a seu lado quando precisar."

    E com essas palavras a mãe da menina a ensinava clamar a Zambi
(Deus) a Oxalá e a todos os Orixás, pedindo sempre força e fé para que
assim pudesse ajudar os irmãos negros adoentados na dura jornada de
luta pela sobrevivência.

    E assim a menina Cambinda rezava, clamava e pedia forças a Zambi,
não só para os irmãos negros, mas por ela própria, pois mesmo sendo
uma criança, e sem entender muito os acontecimentos, sentia que as
coisas eram ruins naquele momento, mas tinha a dor e sentimento que
ainda o pior estaria por vir.

    Havia muitas crianças no porão do navio que estava a doce
Cambinda, e foi determinado pelos traficantes de negros que seria
preservados os meninos e homens adultos não adoentados, pois esses
sim valeriam muito dinheiro aos serem vendidos na chegada ao Brasil.

    Mulheres e meninas não adoentadas seriam alimentadas, mas apenas
uma vez ao dia e o mínimo possível, e o restante que se encontravam
adoentados, seriam avaliados e se os males fossem de uma forma mais
intensa, esses seriam lançados ao mar, ainda vivos.

    Os cadáveres já em decomposição foram retirados dos porões e
lançados ao mar.

    A menina Cambinda rezava aos Orixás clamando que os
espíritos de seus irmãos fossem levados ao encontro de Zambi. A cada
corpo retirado ela se ajoelhava rezando com seus olhos lacrimejados,
e olhando a sua mãe que desesperadamente tentava esconder a angústia
por poder ser elas as próximas vítimas das maldades dos traficantes de
negros. A menina a acalentava e dizia baixinho para que ela tivesse
muita fé, pois Zambi não ia deixá-las morrer na viagem, pois elas
teriam muitas caridades a fazer ao seu povo quando chegassem ao seu
destino.

    E ela dizia isso convicta, pois por muitas noites em que dormia no
amontoar dos porões fétidos, a menina sonhava com uma linda negra que
lhe abraçava carinhosamente, lhe dizia que ela estaria sempre
protegida pela força das águas do mar, e que a cada onda que passasse
levaria todas as dores, tristezas e angústias do seu corpo e de seu
coração, bastaria que ela tivesse fé nos Orixás e nas forças da
natureza.

    E Cambinda assim o fez, acreditando fielmente em seus sonhos, e
aprendendo dezenas de rezas e benzeduras, assim como fazer a cura em
adoentados do corpo e espírito através dos preparos com ervas,
peixes, água, algas, entre tantas outras coisas que lhe fora ensinada
através de seus sonhos de luz vindos por intermédio da linda negra que
se fazia brilhar como os raios do Sol.

    A menina Cambinda, escondida da tripulação do navio negreiro,
fazia suas benzeduras nos negros doentes, se utilizava de tudo que
podia para acalentar as dores de seus irmãos, e com isso foi obtendo
grandes resultados.

    Sua mãe bastante impressionada com os atos da filha, decidiu então
auxiliar em tudo que poderia. E assim as duas trabalhavam
incansavelmente por dias e noites a fio para que os seus irmãos negros
tivessem mais uma chance de sobreviver sem as ameaças dos traficantes
de escravos.

    Chegando em terra firme, Cambinda foi levada a uma fazenda de cana
de açúcar e café no interior do Nordeste do Brasil juntamente com seus
pais e centenas de outros negros.

    Nessa fazenda ela viveu toda sua vida, e também nessa fazenda que
ela conheceu uma negra velha que por gostar muito da menina prometeu
que a ensinaria tudo sobre rezas, benzeduras, ervas, chás, esfregaços
e limpezas do corpo e da alma de espíritos sem luz, que aprendera em
seus 90 anos de idade.

    E assim foi feito, os anos passavam, e Cambinda, que já estava uma
mulher feita, aprendera tudo que lhe foi ensinado pela negra já
centenária.

    Com os ensinamentos da negra, e com todas as lições que Cambinda
aprendeu em sonhos, ela se transformou em uma das maiores benzedeiras
da região, além de encaminhadora, de parteira, de curandeira de
diversos males, tanto do corpo físico quanto do espírito.

    Certa vez, Cambinda já uma senhora madura, foi chamada para fazer
o parto da esposa do coronel fazendeiro, da mesma fazenda na qual ela
era escravizada. Ao chegar aos aposentos da sinhá ela observou que
tinha algo de errado naquela gestação. Se ajoelhou diante da cama na
qual se encontrava a mulher grávida, e rezou profundamente, pedindo a
Mãe Iemanjá que lhe mostrasse qual era o mal que estava ocorrendo no
ventre da sua sinhá.

    E assim de olhos fechados, compenetrada em seus pensamentos,
Cambinda se depara com a imagem da linda Negra que ela tanto
conhecia. E a bela negra diz a Cambinda que estaria na hora de
realizar o parto, mas das duas vidas que estavam no ventre da sinhá,
apenas uma sobreviveria, e que a partir do dia do nascimento da
criança que ficaria encarnada, deveria ser contados 7 dias, e nesse
sétimo dia deveria ser feito uma limpeza de retirada de espíritos
malignos e sem luz, pois eles viriam buscar a alma do recém nascido,
assim como fizeram com a criança que já ia sair do ventre da mãe sem
vida.

    Cambinda chorou, todos olharam para ela sem entender o motivo das
lágrimas.

    O coronel a puxa pelo braço com violência. Grita, quer saber o que
está acontecendo.

    A negra abaixa a cabeça e num sussurro diz ao coronel que no
ventre da sinhá há duas crianças, uma vai sobreviver, a outra já está
desencarnada.

    O coronel desesperado manda ela fazer o parto, e diz que se algo
de ruim acontecer com as crianças ou com a sinhá, a negra irá pagar
com a própria vida.

    A negra Cambinda faz o parto, primeiro nasce uma menina, e logo em
seguida sai o corpo inerte de um menino. Ela o retira e entrega ao
coronel, dizendo que o menino já estava sem vida.

    O coronel a olha com um grande ódio, e enquanto as mucamas fazem a
limpeza do ambiente e da menina recém nascida, a sinhá chora a morte
de seu menino, que se encontra nos braços do coronel.

    Ele pega a negra Cambinda pelo braço e a arrasta para fora dos
aposentos da sinhá, a leva até as mãos de um feitor e ordena que a
leve ao tronco e a deixe lá até morrer, mas antes a açoite sem dó nem
piedade.

    Cambinda apenas olha o coronel, como se entendesse o seu ódio. E
antes de ser levada diz ao coronel:

    "Espíritos da escuridão levaram a alma de seu menino. Esses
espíritos são frutos de seu ódio contra os negros que o senhor
escraviza como animais. Minha Mãe Iemanjá, na sua proteção materna, já
tinha me mostrado que uma das crianças estaria desencarnada no ventre
da sinhá, e que deveria ser contado sete dias após o nascimento, pois
no sétimo dia esses espíritos da escuridão voltariam para levar a alma
da outra criança. Peço que não deixe seu ódio fortalecer esses
espíritos, pois assim sua filha poderá ser salva das garras malignas
da morte e desses obsessores da escuridão."

    O coronel sem dar atenção a negra, manda a levarem ao tronco e
obedecerem as ordens dadas.

    E assim foi feito.

    Já no tronco, a negra foi açoitada, seu corpo ardia, feridas
abriam e ela chorava baixinho.

    Sua mãe, que agora já estava uma velha negra quase sem forças,
clamava aos feitores ajoelhada a seus pés, por clemência a sua filha.
O feitor manda retirar a velha negra dali, que fora arrastada e jogada
na senzala.

    Cambinda de olhos fechados, rezava pedindo forças aos Orixás. E em
resposta a voz da negra que por tantas vezes apareceu em seus sonhos
lhe dizendo para que ela não fraquejasse sua fé. Teria que aguentar a
dor, o sofrimento e a humilhação, mas não por ela própria, não por sua
vida, mas para que pudesse no sétimo dia estar com forças para salvar
o espírito de uma criança inocente.

    E assim foram se passando os dias, Cambinda resistia fortemente o
tronco, as chibatadas, as noites frias, a falta de comida e bebida.

    E enfim chegou o sétimo dia.

    Nos aposentos do coronel com a sinhá, se encontrava a menina recém
nascida. Tinha sete dias de vida. E inocentemente dormia sem saber que
estava sendo observada por espíritos da escuridão.

    O coronel se preparava para mais um dia de comando de sua fazenda,
quando a sinhá se levanta da cama, e sem dizer nada anda até ele. O
olha no fundo dos olhos, abre um pequeno sorriso, e o ataca numa
ferocidade devastadora.

    Com uma voz rouca diz que chegou a hora dele perder mais um pedaço
de sua alma. Que já tinha levado seu filho e agora veio para buscar a
menina. E com isso deu um salto indo para junto da criança.

    O coronel assustado avança para junto da esposa na intenção de a
deter, e assim salvar a sua filha. Num segundo de reflexão ele se
lembra das palavras da negra Cambinda, lembrando-se também que estava
fazendo exatamente sete dias do nascimento de sua filha.

    Ele tentando controlar a esposa, que estava obsediada, tomada por
uma força descomunal, um espírito negro que o olhava com ódio,
grunhindo e tentando a todo custo atacar a pequena recém nascida.

    O coronel agarra com todas as suas forças o corpo da mulher, mas
ela com uma força grandiosa o joga contra a parede. Ele mesmo
atordoado volta em sua tentativa de conter a sinhá. Grita por socorro,
pede ajuda aos negros que trabalhavam dentro da casa grande.

    Ao ouvir seus gritos desesperados, os negros correm em direção
dos aposentos do casal. Uma velha negra adentra ao cômodo vendo aquela
cena demoníaca, enquanto o coronel agarrado ao corpo da sinhá, pede
desesperadamente que fossem buscar a negra Cambinda, que ainda se
encontrava presa ao tronco.

    E assim foi feito.

    Ao chegarem com a negra, que se encontrava com suas vestes
rasgadas, seu corpo surrado, feridas abertas, o sangue manchando seu
corpo e os trapos que vestia, Cambinda se pôs de joelhos em oração,
clamando a sua Mãe Iemanjá que lhe mostrasse o caminho para vencer tal
força daquele espírito da escuridão.

    De olhos cerrados, ela vê a imagem da negra Mãe, sua voz serena,
seu jeito amável e sua luz entram na mente da velha Cambinda, lhe
dizendo:

"Filha amada, chegou a hora de mostrar tudo que aprendera em todos
esses anos. Vá até fora dessa casa, lá você vai pegar 7 ervas que sua
intuição vai lhe mostrar, dessas 7 ervas traga apenas 3, e dessas 3
apenas uma vai ser a que poderá salvar a vida dessa criança das garras
desse espírito sem luz. Ao retornar aqui, passe essa erva no corpo da
pequena. Se for a correta a criança estará salva, caso sua fé for
menor que a força desse obsessor, a alma da criança irá para os
domínios do reino da escuridão."

    E assim ela sai em disparada, enquanto a sinhá era segura pelo
coronel e mais 3 negros escravos.

    Ela faz o que lhe foi dito, e retorna para os aposentos do
coronel. E com uma só erva escolhida na mão, ela se aproxima da menina
recém nascida, esfrega a erva nas mãos, e passa por todo corpo da
criança. Nesse momento a sinhá se desvincula dos fortes braços dos
negros e do coronel e corre em direção a filha. Ela empurra Cambinda a
jogando longe e ao chão, e quando se aproxima da criança, seus olhos
estão vermelhos de ódio, um ódio maligno, incomum, ela olha para o
coronel e num grunhido diz apenas a frase:

"Eu levarei mais essa alma comigo, e graças a sua crueldade que me da
forças ninguém poderá vencer-me."

    E voltando para a menina novamente da uma terrível gargalhada que
estremece a todos no local.

    Mas quando ela ia atacar a menina, foi jogada para trás como se
uma força invisível a dominasse. Entre gritos e grunhidos, a mulher
desaba ao chão, ficando inerte. No mesmo instante um dos negros que
ali se encontrava, absorve toda aquela força maligna, e por entre
gritos de ódio parte para cima da criança, mas não consegue chegar
perto dela. A erva escolhida pela querida Cambinda a protegia de todos
os males da escuridão.

    Cambinda, numa ação rápida, pega o restante da erva e passa na
cabeça do negro obsediado, que no mesmo momento cai ao chão, da mesma
maneira que a sinhá.

    A negra abrindo os braços, e com uma quantidade de erva em cada
uma das mãos, clama a Oxalá, sua Mãe Iemanjá, todos os Orixás e
Entidades de Luz para que lutem junto a ela, dando-lhe forças e fé
para vencer aquele mal.

    As forças vieram. Um barulho ecoou dentro do quarto, como um grito
de dor e desespero. Cadeiras e mesas viraram dentro de toda a casa
grande, livros caíam das prateleiras da biblioteca do coronel, taças e
garrafas de vinho foram despedaçadas junto as paredes e ao chão.

    E a calmaria voltou. Todos se entreolharam um tanto assustados.
Cambinda se ajoelha e reza. Agradece a força recebida, agradece a
vitória conquistada, agradece pela vida da pequena recém nascida,
filha do coronel.

    Por entre lágrimas e dores, a sinhá desperta, sem entender o
acontecido, da mesma maneira o escravo que também fora obsediado.

    O coronel se ajoelha junto a Velha Cambinda, lhe da um abraço,
chora e lhe agradece, pedindo perdão por tudo, por toda a dor e
desespero que ele a fez passar por 7 dias de amargura.

    Ela com olhar cansado, apenas diz a seu senhor:

    "As forças do mal buscam ódio, maledicência, rancor, nos corações
de quem distribui a dor. Mas essa dor distribuída um dia fará com que
dores maiores possam voltar a quem está fortalecendo o mal. Senhor
coronel, demonstre seu respeito e agradecimento por nosso povo negro,
assim como os Orixás demonstraram um grande amor pelo senhor,
ajudando a salvar sua filha. Lembre-se, não foi apenas um espírito
maligno da escuridão que levou seu filho, o senhor próprio o deu
forças para isso. O mal só vence se não tivermos o bem no coração."

    E assim ela se levantou e caminhou para junto do feitor,
dizendo-lhe:

"Cá estou eu, com a força de minha Mãe Iemanjá, pronta para retornar
ao meu castigo."

    O coronel, mais uma vez, corre para a negra Cambinda pedindo-lhe
perdão e dizendo que ela não iria nunca mais ao tronco.

    Ela de olhos baixos, voz fraca, diz baixinho ao coronel:

"Sou uma negra, meu povo é negro. Enquanto meu povo tiver que sofrer
nos açoites, no tronco, na falta de respeito, de comida e de cuidados,
eu ficarei no tronco, e ficarei lá até meu corpo não aguentar mais,
pois nunca seria livre enquanto ver meus irmãos sendo açoitados até a
morte enquanto eu, que não sou nada nem melhor que eles fico sem o
castigo merecido aos olhos dos senhores e senhoras de pele branca.
O castigo que deveria receber por ser negra."

    O coronel de imediato mandou que fossem tirados todos os negros do
tronco, que todos os troncos fossem destruídos, que todos os negros
fossem cuidados e alimentados descentemente.

    A Velha Cambinda viveu na fazenda até seus 90 anos, ela foi a
cuidadora de muitos males entre negros e brancos. Foi mucama da
pequena sinhá, filha do coronel, que após a primeira filha ainda foi
pai de 5 outras crianças entre meninos e meninas, e nunca mais fora
atormentado pelo espírito obsessor.

    A Vovó Cambinda hoje trabalha caridosamente na Umbanda, auxiliando
seus filhos amados, ajudando a curar males, retirar Kiumbas, Eguns e
Espíritos Zombeteiros da vida de consulentes que buscam ajuda dessa
amada Preta Velha.

    Com seu modo amável e sereno ela está sempre pronta a ajudar no
que for necessário, dentro do merecimento de cada um.

    Saravá Vovó Cambinda!

Adorei as Almas!




Carlos de Ogum