A Maldição e a Virtude - Apenas um Conto de Magia, Parte 1
Esta é uma das muitas lendas contadas de Sertório: trovador, músico e cantor; herói e meio santo. Num lugar qualquer do passado Sertório viajava no dorso de Firmamento, tinhoso e inteligente animal negro, salpicado de manchas brancas pelo corpo, com um perfeito losango sobre a testa. Dizia-se que o cavalo só faltava falar; que sua presença era marcante em episódios vividos por Sertório, tendo-o salvo da morte certa em várias oportunidades. Segundo ainda diziam, que além de magnífico de saúde e aparência, era de alma sensível, trotando com graça em medidos compassos quando seu dono, artista virtuoso, soltava-se ao sabor da arte. Sertório sabia quando Firmamento pedia. Ele empacava de tal jeito que nada o tirava do lugar, somente a voz poética e melodiosa do cantor. Então se tornava leve e dócil.
Terminado mais um retiro num mosteiro, cujo principal, monge e amigo, apreciava-o e à sua arte, Sertório resolveu retomar os caminhos do mundo semeando o que trazia e buscando o que não possuía. Eram frequentes suas passagens e períodos de reclusão no citado mosteiro. Insinuavam que Sertório, se por um lado aprendia as perfeitas regras do jejum e ascetismo, mortificando-se dias a fio a fim de se purificar e matar as tentações que o mundo lhe produzia, por outro lado, ensinava aos eruditos as artes da invocação e práticas da magia. Todavia, ninguém jamais conseguira ter provas deste pacto. O silêncio entre os monges era sua lei e quando perguntados, eles, em resposta, somente sorriam.
A viola, amiga inseparável do cantor – magnífica e assaz ambicionada – repousava agora às suas costas. Contavam que uma princesa, quase morta de paixão pelo belo poeta, houvera-o presenteado; que a viola, comprada de um mercador por muito ouro, pertencera a um músico que a vendera momentos antes de sua morte. A ambição por ela era tamanha que teria levado três ladrões à morte em ocasiões diferentes. Afirmavam-na construída por um duende a mando de uma ninfa da música, que a encantara e a jogara ao mundo. De fato, sua beleza era incomparável, a vibração de suas cordas, perfeitas. Ninguém jamais conseguira descrevê-la com precisão. Somente sabiam-na construída de madeira leve e desconhecida, com braço da mesma cepa terminado numa flor trilobada. Muitos juravam que sob os ágeis dedos de Sertório a viola criava vida e cores, a flor se abria mais soltando poeira luminosa e prateada, e muitas ninfas, em véus coloridos, vinham rodeá-lo a dançar extasiadas. E, Sertório, quando inquirido a respeito não respondia, antes fazia uma trova e os deixava curiosos a pensar sobre ela.
Sertório, como não tivesse uma definição de qual trilha seguir ou qual local atingir, puxou Firmamento para a esquerda e penetrou pelo bosque. A tarde dentro em pouco se apagaria e o moço queria encontrar um lugar onde dormir. Quanto ao frio da noite, estaria protegido porque trazia um cobertor espesso de lã de carneiro dobrado sobre a anca do animal. Mas quanto ao alimento, teria sorte se encontrasse alguma fruteira, pois mesmo sem se abster da carne não matava para comer.
Assim, mediante esta imediata preocupação, não tinha alento e nem inspiração para o canto, embora apreciasse as graciosas formas das plantas, as flores silvestres, os agradáveis zumbidos dos insetos e os estridentes cantos dos pássaros. E quanto mais Firmamento se enfiava por arbustos e capins altos abrindo passagens e alas, ou por entre galhadas dos arvoredos, o bosque se abria e se oferecia na sua virginal singularidade, dando-lhe as boas vindas e acolhimento, talvez esperando por uma recompensa musicada do cantor. Mas Sertório não cantava. Persistia de cerviz altiva e olhar percuciente, denotando que de todas as formas procurava. Em seguidos momentos a cerviz dobrava-se por que um galho mais alto obstava sua altivez. Porém, ultrapassado o obstáculo, ei-lo de novo retomando o prumo da postura para, mais adiante, submeter-se outra vez. Nesta estranha dança às vezes interrompida por um frear de Firmamento, uma reorientação do cavaleiro ou uma retomada de direção, nosso personagem se interiorizava cada vez mais, embrenhando-se em gargantas verdes e profundas, nada vendo de aproveitável nem satisfazendo a fome que o apertava.
Quando o manto noturno começava a descer e já se estendia preguiçosamente sobre todas as coisas, as árvores deixavam refletir em suas folhas uma coloração insegura, as aves e bichos quase silenciavam se acolhendo mutuamente, produzindo toadas melancólicas e já sonolentas, e trechos do céu que dali se podia descortinar mostravam nuvens acinzentadas, Sertório viu algo por entre as ramagens, lá adiante: um filete de fumaça. Esperançado, pressionou Firmamento com os calcanhares e se encaminhou para o local, desvencilhando-se dos ramos e galhos com maior energia, usando braços e mãos.
O filete de fumaça fez seu olhar escorregar para uma chaminé de tijolos; daí para um telhado semi-encoberto por folhas e galhos. Era, sem dúvida, uma casa, escondida bem no interior do bosque – que sorte tivera! Aproximando-se, pôde constatar sua aparência torta, velha e mal construída, de paredes em tijolos disformes, telhado em camadas de palhas soltando pedaços, tendo ao fundo do terreno um barranco irregular. Uma cerca de paus enviesados, amarrados por cipós e fibras, e um portão solto encostado numa das estacas da cerca, constituíam os limites frontais e laterais da propriedade e respectiva entrada, naquela vastidão de lugares de ninguém.
Era nada acolhedor o seu aspecto, bem ao contrário: de causar certo calafrio e afastar as pretensões dos passantes. Sertório, não obstante, sem carregar temores na alma, não tendo alternativa e vendo-a como a melhor solução para os seus problemas imediatos, apeou diante do portão e chamou:
- Ó de casa! Nenhuma resposta, o silêncio era absoluto, a imobilidade total; somente a fumaça ao alto mexia-se, mesmo assim se esticando com lentidão. Resolvido, ultrapassou o umbral e chegou ao limiar da porta fechada, parando a dois passos dela.
- Ó de casa!
- Vai embora, estranho, leva contigo tua ousadia! Não queiras tornar-te também amaldiçoado!
Uma voz esganiçada e esquisita falou-lhe às costas. Ele se virou rapidamente surpreso com o que ouvia e mais ainda com o que via. Era um anão, trazendo às mãos um arco retesado e uma flecha apontada, tendo às costas em tamanho natural, porém desproporcional à sua altura, que seria talvez de um metro e trinta, uma aljava de couro carregada de outras flechas. Sertório já ouvira falar dele. Descreviam-no como lenda, mas via neste instante que ele realmente existia. Diziam, teria ele sido bufão, que havia tomado à poção mágica da longevidade, que teria duzentos anos de idade e que resolvera se encerrar na solidão. Afirmavam que não escolhera tal isolamento, mas fora forçado a fazê-lo, pois ao ingerir a poção acometera-o uma maldição. Essa maldição seria terrível e acometeria também a todos que dormissem debaixo do mesmo teto onde ele dormia. Alguns confirmavam tê-lo encontrado pela floresta, ou à sua casa, mas, temerosos, fugiam espavoridos. Outros, mais corajosos, chegavam a conversar com ele, dando-lhe notícias do mundo e ouvindo trechos de sua vida, porém jamais passavam a noite em sua companhia.
Era feio o homenzinho: magro, enrugado, de olhos grandes e caídos, nariz adunco e queixo comprido, e além de tudo um pouco arcado. Sertório, passada a surpresa, sorriu polidamente, levando a mão ao chapéu e o saudando reverentemente:
- Saudações, senhor bufão, tenho ouvido falar de ti, muito assustadoramente, aliás, julgando-te uma lenda. Todavia, eis-te aqui diante de meus olhos, falando-me e advertindo-me. Permitas que me apresente: sou Sertório, trovador, cantor e músico, e me encontro perdido neste bosque encantador, hoje desafortunado para mim, cansado e faminto.
- Sertório, o trovador? – surpreendeu-se o bufão, piscando com cara atoleimada, folgando e baixando o arco.
- Vejo que ouviste falar de minha humilde pessoa. Então não estás tão afastado do mundo quanto dizem. És mesmo, Aldegundes, o bufão amaldiçoado?
- Sim, sou Aldegundes, o bufão amaldiçoado – confirmou com acrimônia – teus feitos já chegaram aos meus ouvidos. Contam que além de amigo das artes és valente e possuidor de grande nobreza de espírito, é verdade?
- Exageros, senhor bufão, sou somente um homem de sensibilidade que busca pela beleza e ama a verdade. Aldegundes olhou-o com maior admiração, da cabeça aos pés, notando melhor o seu belo rosto e principesco porte, invejando-o.
- Vejo, quanto ao aspecto exterior, que não exageraram ao descrever-te e se fores realmente tão nobre quanto dizem, poderás ajudar-me.
- Referes-te à maldição?
- Teme-a, trovador? - Sertório somente sorriu, mas tão intensamente que esse encantador sorriso inundou ao feio bufão de certeza – Tens coragem de dormir sob o meu teto? – insistiu Aldegundes. Sertório, ainda sorrindo, arcou-se em reverência, apontando para a direção da porta. Ele, satisfeito, encaminhou-se e adentrou. Sertório o seguiu.
`A tosca mesa, pisando o chão de terra batida, sentados sobre tocos de árvores, eles jantaram. O guisado de coelho estava delicioso e as frutas ótimas. Nesta sala em que permanecera desde que entrara, Sertório pode notar a simplicidade dela; que toda a mobília e objetos eram velhíssimos e mal acabados, tortos como era a casa, certamente feitos pelas mãos do próprio truão ou por ele remendados, e que à luz da candeia as moventes sombras lembravam coisas fantasmagóricas a querer possuir tentáculos e abraçar. Terminado o silencioso repasto, Sertório solicitou ao dono da casa que lhe deixasse trazer Firmamento para os limites do quintal onde, sob a proteção de uma parede, poderia passar melhor a noite. Aldegundes concordou, mandando que o levasse para junto do forno de barro onde fazia assados, debaixo de um alpendre lá no fundo. Lá, encontraria também um saco contendo pela metade grãos de milho, que usava para dar de comer às galinhas e atrair outras aves e caçá-las, além de um balde d’água que poderia a ambos utilizá-los. Sertório assim fez. Firmamento quase nada comeu do milho, por que pastara o suficiente do lado de fora, porém bebeu água com disposição.
Sertório surpreendia-se com esta solicitude inicial do bufão e se enchia de curiosidade pelo que o aguardava, precisando, porém, ficar atento e de olhos bem abertos. Tendo retornado e recolocado a candeia sobre a mesa, pôde notar com surpresa pela bruxuleante e fraca luz da vela de cera, que a fisionomia do pequeno homem se transformara. Ele estava agora carrancudo, de lábios apertados, olhando-o fixamente. Sertório sentou-se e o experimentou:
- É verdade, senhor bufão, que tomaste uma poção mágica que te faz viver com o mesmo aspecto há duzentos anos?
- Cento e cinquenta, mas envelheci também.
- Ainda assim é muito tempo para um mortal comum. Dizem que a maldição te foi trazida ao teres ingerido tal poção, é também verdade este fato?
- Senhor Sertório – disse com especial ênfase com aquela desagradável voz – queres certamente ouvir sobre toda a minha história, já que levantei a possibilidade de poderes me ajudar?
- Se merecer de ti tamanha confidência, sim!
- E ajudar-me-ia de fato se te dissesse que necessito destruir a maldição e correrias todos os riscos junto comigo?
- Somente poderei afirmar-te, após ter ouvido tua história, senhor bufão, antes não!
- Mas se a ouvisses e não te dispusesses a ajudar-me?
- Iria embora e calar-me-ia para sempre, jamais dizendo a alguém uma única palavra sobre o assunto enquanto tu vivesses.
- Humm... – resmungou o bufão, levando a mão ao queixo, levantando uma sobrancelha e pregando o olhar nervoso no plácido e claro rosto do belo mancebo – e que provas me dás de seres de fato Sertório de quem tantos falam?
Sertório sorriu. Segurando a presilha em diagonal ao tórax, trazendo a viola adiante e acariciando suas cordas, dedilhou-as ensaiando qualquer coisa e começou a cantar. A voz perfeita e melodiosa do cantor encheu o ar, o lirismo de seus versos se derramou melifluamente, as notas maravilhosas da viola vibraram magicamente transformando todo o ambiente. Ao término, Aldegundes já havia perdido algo da carranca, mas não estava inebriado como tantos, após ouvirem-no. Havia nele tanta rudeza de espírito quanto havia nos objetos e naquela casa inteira.
- Prometes, então, que me ajudando ou não nada revelarás de minha história?
- Prometo, enquanto tu viveres! – reafirmou Sertório.
O bufão agitou-se no banco, jogou nervosamente as mãos à frente, unindo os dedos e vincando a testa, concentrando-se no que ia contar. Sertório, como estava permaneceu, calmo, porém atento, disposto a ouvir a verdade de todas as coisas deste pequeno ser que lhe chegavam aos ouvidos através dos homens.
- É um alívio, senhor trovador, depois de tantos anos ter alguém digno de confiança diante de mim, a escutar minha história. Há mais de um século estou enterrado vivo nesta casa, neste lugar solitário, sem uma companhia humana, sem um calor igual. Desde o maldito dia em que tomei a poção, julgando estar aprisionando a fortuna, acabei prisioneiro de meu desventurado desejo. Saibas, senhor, que a maldição de fato existe, sendo maligna unicamente a mim. Não te preocupes, portanto, pois não te acompanharás quando daqui saíres. Todavia, somente alguém como tu, creio eu, disposto a ajudar-me, poderia, em verdade, livrar-me dela. O começo de tudo? Quase me esqueço. Teria trinta e sete anos de idade, talvez quarenta, era o bufão preferido do rei, tendo me tornado tal depois de comprado de um circo onde era saltimbanco. Meus pais, viajantes por índole, naturais de outro país, tendo observado pelo meu físico e feiura que outra coisa melhor eu não poderia ser, venderam-me ao referido circo por um punhado de moedas quando eu atingia a idade de catorze anos. O dono do circo adestrou-me por alguns anos, como se adestra a um animal doméstico a fim de que faça tudo aquilo o que se queira.
O rei, homem inconstante, por vezes divertido, por vezes violento, principalmente quando bêbado, exigia-me quase sempre ao seu lado e em todas as suas festas e recepções. Nessas ocasiões, enquanto os fantasmas do vinho não tinham ainda se soltado, ele ria e gargalhava com minhas anedotas maliciosas e comicidade. Porém, quando o vinho acordava as sombras de seu mundo infernal, ele me espancava e me dava pontapés.
Sua filha única, a princesa, bela e também cruel, por motivos que desconhecia, não perdia a menor oportunidade de me humilhar e maltratar, despertando com isso sentimento recíproco de rancor em meu coração. Entretanto, que poderia eu, pobre e escravizado bufão, fazer contra o rei e a princesa? Quanto à rainha, pouco ligava ao que se passava em redor, estando mais preocupada com seus encontros amorosos, não tomando conhecimento de minha insignificante vida. Aquela situação foi se tornando verdadeiramente insuportável. Com o tempo, a princesa não se contentava mais em humilhar-me, espancava-me também ou me atirava coisas onde me visse, dizendo odiar minha feiura. Um ódio quase gritante, em contrapartida, crescia cada vez mais em mim contra todos e a custo era abafado. Isto se agravou mais no dia em que o rei, numa de suas escandalosas festas, obrigou-me a lamber do chão o vinho que derramara. Naquele momento, jurei vingar-me dele, da princesa e de todos os que riam das humilhações a que me submetiam.
Havia fora da cidade um bruxo, velho e solitário, que, segundo contavam, fazia bruxarias por encomendas. Aquele que fosse visto em sua companhia, ou acusado de frequentar sua casa, seria desprezado e apedrejado. Havia, em relação ao bruxo, um temor maior do que escrúpulos. Se tanto o temiam era porque o homem seria poderoso, pensei eu, e mergulhado numa torrente de revolta, sedento de vingança, resolvi ir visitá-lo, saindo à noite, às escondidas, com grande risco, andando pela estrada e depois pelos caminhos escuros. Ruminava os planos de vingança, açulando mais e mais um ódio que se agigantava.
Diziam que o bruxo encantava, fazia poções e enfeitiçava corações e eu desejava encomendar algo forte, que os fizesse humilhar-se diante de mim. Pensava também em envenená-los de uma só vez, mas assim não iria saborear o prazer de vê-los sofrer. Ademais, tinha outra idéia em mente: a idéia da riqueza e opulência. Sendo rico e poderoso, aqueles que zombavam de minha condição iriam respeitar-me e bajular-me. Mas quanto ao rei e a princesa? Esses eram os meus donos e patrões. Se me tornasse rico, nada em verdade me pertenceria senão a eles. Sim, era isso, antes de tudo a alforria, a liberdade, depois a riqueza e a vingança. E após, matá-los-ia a ambos de uma só vez? Tais eram meus pensamentos, meus desejos de assim realizá-los, sem ao menos saber que tipo de bruxaria conseguiria encomendar.
Chegando a casa do bruxo, bati à porta. A noite estava fria, penetrada de espessa névoa. Uma voz rouca e abafada ordenou-me que entrasse. Sob a fraca luz de vela, a lúgubre e desarrumada casa, com objetos de cera e vasilhames espalhados por todos os lados, exalando muitos cheiros, causava-me calafrios. O fogo da lareira extinguia-se. A temperatura ali dentro era quase tão igual quanto lá fora.
Não o vendo parei naquela sala, mas a mesma voz chamou-me do quarto, mandando-me que lhe trouxesse a candeia de sobre a mesa. Assim fiz e fui encontrá-lo deitado, tremendo de frio. Era um velho realmente, e pelo seu aspecto estaria doente. Sem a menor formalidade perguntou-me o que eu queria. Estando ávido por uma confidência, contei-lhe tudo sobre minha vida e sobre os meus planos. Afirmei-lhe, convictamente, estar disposto a qualquer coisa conquanto obtivesse liberdade e poder. Ao término, ele me olhava com grande curiosidade, estudando-me atentamente, deixando-me embaraçado e temeroso.
Finalmente falou, dizendo que me poderia dar o que eu desejava, mas o preço seria alto: metade do ouro que eu ganharia. Intrigado, perguntei-lhe por que precisaria de tanto ouro já que por toda a vida, ao que parecia, vivera pobre. Ele revelou-me então que estando para morrer, desejava ser enterrado no cemitério dos bruxos, longe dali, onde a fraternidade dos malignos se reúne em conciliábulos e onde só os espíritos que adquiriram em vida o direito a uma sepultura no lugar, podem frequentar e fazer parte. E isso custaria muito ouro!
Como não tivesse escolha se desejasse levar adiante meus planos de vingança, aceitei o trato. Ele, imediatamente, me pediu que o amparasse e o levasse para a sala. Em lá chegando, apoiou-se na mesa e apontou para a lareira, mandando-me que a empurrasse. Com surpresa, via-a escorregar e se abrir, dando lugar a uma passagem secreta. De volta à mesa, amparei-o entrando com ele através da passagem. Era-me difícil carregá-lo porque sendo franzino e de baixa estatura, não conseguia grandes resultados neste tipo de auxílio.
Descendo alguns degraus, chegamos a um porão onde o bruxo guardava em urnas e prateleiras todos os apetrechos e ingredientes secretos de magia negra e onde existia um caldeirão. Fazendo-me de seu auxiliar, mandou-me colocar sob o caldeirão rachas da madeira amontoada a um canto, ensinando-me como fazer o fogo. Em seguida, foi-me pedindo os objetos e os ingredientes de que necessitava. Sempre que eu estendia-lhe alguma coisa, ele fechava os olhos e recitava uma fórmula mágica, soltando sons guturais, gritando e rindo, às vezes olhando para o alto da escada onde a porta permanecia aberta. Isso me causava arrepios e grande medo, mas assim mesmo eu continuava. Em certo momento ele parou tudo, ficando a pensar em silêncio. Depois, com cara zangada, apontou para um grosso e enorme livro negro que descansava junto à parede sobre um pedestal de madeira, fazendo-me sinal para que o levasse até ali. Abrindo as largas e compridas laudas com cuidado e esforço, correndo o enrugado dedo sobre figuras e textos de uma escrita ininteligível para mim, certamente codificada, ele grunhiu de satisfação ao encontrar o que buscava. Após ler tudo com atenção e memorizar o que precisava, mandou-me que o levasse de volta junto ao caldeirão.
Quando o caldeirão fervia, ele jogou os ingredientes e invocou os espíritos do mal. Depois, com uma concha, cujo cabo era um osso humano, retirou a quantidade julgada necessária daquela poção depositando-a num recipiente que eu levaria. Enquanto fazia isso, instrui-me como usá-la, explicando-me que bastariam três gotas numa taça de vinho a fim de que tornasse qualquer pessoa submissa e escrava aos meus desejos. Esse poder de submissão era total, porém temporário. Eu deveria aproveitar esses momentos para exigir da vítima tudo o que quisesse por que ela estaria sob o encantamento da poção. Porém, tendo a vítima dormido e depois que acordasse, ela estaria consciente de todos os seus atos, embora não tivesse ainda forças para voltar atrás, mesmo contrariada. Para novas e diferentes exigências seria aconselhável dar-lhe novamente mais da poção, porém correria o risco dela recusar-se a bebê-la. A poção tinha sido preparada com os únicos ingredientes nesse teor que ele agora possuía, por isso era preciosa e insubstituível.
Antes de entregá-la, mandou-me encher duas taças de um vinho que ali havia a fim de que selássemos o pacto. Tendo-o tomado, observado antes e inutilmente que ele o tomasse primeiro, o bruxo riu estranhamente informando-me que bebêramos veneno. O veneno, entretanto, levaria exatamente sete dias para fazer efeito mortal, o prazo máximo de que eu dispunha para realizar o plano e trazer-lhe o pagamento. Se falhasse, ou o ouro fosse insuficiente para o seu intento, ele não me daria o antídoto e eu morreria. Da mesma forma, morreria se tentasse enganá-lo na partilha por que ele falava a linguagem dos corvos e um deles me vigiaria dia e noite. Inútil também seria procurar outra forma de anular o efeito do veneno: somente ele conhecia sua natureza. Após ter sido novamente obrigado a ajudá-lo a locomover-se de volta ao quarto, deixei-o, voltando apavorado para o castelo, temendo que me visem, levando comigo a poção do encantamento.
Naquela noite não consegui dormir e muito mal na outra; somente pensando no que me acontecera. Na madrugada do terceiro dia, em meu pequeno quarto – mais um cubículo do que outra coisa qualquer numa das torres menores no fundo do castelo – subi num velho baú encostado à parede e me apoiei no frio peitoril de pedra da janela, a fim de olhar a restrita paisagem. Apesar da escuridão e fraca luz da lua, conseguia divisar entre sombras e contornos um pedaço da rua lá embaixo, úmida pelo sereno. Mas não eram essas poucas coisas que eu discernia que me prendiam a atenção. Eu as olhava tão somente. Em meus pensamentos ainda perambulavam as sombras das cenas passadas com o bruxo, e revivia as imagens, admirando-me de minha coragem e proposta. Acreditava agora que somente impelido por tal ardente ódio a queimar-me as entranhas, pudera ir tão longe. Não que o ódio endereçado ao rei, à princesa e a toda a corja de aduladores houvesse arrefecido. Existia ainda e intensamente. Todavia, se naquele instante da visita ao bruxo, eu pensasse ou me sentisse como agora, certamente não teria feito o pacto com o sinistro. Ante essa reflexão, meu corpo foi tomado de um estremecimento e cheguei a perguntar-me se, apesar de tudo, das humilhações e maus tratos porque passava, teria realmente coragem para levar adiante o plano de vingança.
Neste exato instante, ouvi o crocitar de um corvo e olhei para cima, percebendo, apesar da noite, que ali estava um voando em direção de minha janela. Chegando mais próximo atacou-me com as garras, embaraçando-se aos meus cabelos, bicando diversas vezes minha cabeça. Assustado, bati-lhe. Ele me largou voando novamente, subindo e se preparando para nova investida. Rapidamente fechei a janela impedindo-o de entrar, ouvindo-lhe, entretanto, o ruflar de asas ao pousar sobre o peitoril, ali a permanecer a vigiar-me e a lembrar-me de que o pacto precisava ser cumprido. Aquilo realmente surtiu efeito em mim. Relembrando que tomara o veneno, e, portanto, deveria apressar-me ou morrer, decidi realizar o plano tão logo a oportunidade se me oferecesse, sem delongas.
Dia seguinte, o rei mandou chamar-me a fim de que permanecesse ao seu lado enquanto recebia uma comitiva de mercadores estrangeiros, que vinha para oferecer presentes e obter permissão para negociar na cidade. Tendo enchido um recipiente menor com a poção e tê-lo fechado bem, levei-o comigo na tentativa de usá-la na primeira oportunidade.
Durante a recepção e na entrega dos presentes, fiquei atento, porém o rei não pediu vinho. Ao invés, o miserável ordenou-me que contasse uma anedota para aqueles estrangeiros repugnantes que, de apreciável tinham somente os presentes. Eles riram e o rei também e tal como se dirigisse a um cão obediente, ao final, apontou-me para o lado do trono, ordenando-me que ali eu ficasse. A princesa e a rainha estavam deslumbradas com os tecidos de fina seda e cores vivas que lhes eram ofertados bem como com os pequenos objetos e pedras preciosas, sequer notando minha presença.
Finalmente, o rei se retirou indo sozinho para os seus aposentos. Aproveitando-me disso, fui até a cozinha e menti ao copeiro, dizendo que o rei pedira vinho e que eu mesmo o levasse. Não seria a primeira vez disso acontecer, dessa maneira não haveria estranheza ao fato e logo o copeiro trazia da adega a bandeja e a taça real com o vinho, entregando-me. No caminho, desviando-me do corredor principal, entrei numa pequena guarita abandonada que se lançava ao alto, acima de um recuado canteiro de jardim, e certificando-me de que não havia ninguém por perto, despejei três gotas da poção na taça, retornando ao corredor, logo entrando nos aposentos reais.
Sentado à escrivaninha, o rei escrevia avidamente não prestando atenção a minha pessoa. Coloquei a bandeja sobre a mesa, alertando-o sobre isto, e ele somente resmungou sem olhar-me, concentrado no que fazia. Saí rapidamente, excitado e trêmulo, aguardando impacientemente do lado de fora. Ao cabo de certo tempo, resolvi entrar novamente, encaminhando-me vacilante para a escrivaninha onde ele ainda se encontrava. Meu coração quase pulou do peito ao notar que a taça estava pela metade. Mas o rei, aparentemente, continuava o mesmo, pois ainda escrevia. Teria a poção falhado? Ansioso, perguntei-lhe se desejava mais vinho. Para minha surpresa e desconcerto ele largou a pena e disse que sim, somente porque eu lhe pedira. Ele tomou mais dois goles e ficou a olhar-me com ar aparvalhado, e eu, estupefato, via que a poção parecia ter funcionado.
Não obstante, precisava testá-lo e pedi-lhe que me desse um pergaminho de presente, ao que ele prontamente acedeu. Exultante, pedi-lhe o cordão de ouro com o medalhão que trazia ao pescoço, e ele deu-mos. Depois outras joias e o rei a nada me negava. Tranquei a porta e deitei-me em sua cama, ordenando-lhe que ficasse de joelhos ao meu lado enquanto eu pensava. Como um cãozinho, ele me obedeceu. Então, ali deitado, pensei em como obter ouro sem que ninguém suspeitasse, pois ambicionava muito, vindo-me, afinal, uma idéia. Levantando-me da cama, ordenei-lhe que escrevesse uma carta de alforria, libertando-me da escravidão. Ele assim fez. Depois, mandei-o formular uma ordem-de-trânsito, ao mesmo tempo um salvo-conduto, a fim de que a carga que eu portasse não fosse interceptada por ninguém no reino inteiro, nem violada, por tratar-se de assunto de interesse real a meus cuidados, sendo transportada para destino somente conhecido por mim. Sem titubear o rei a formulou. Novamente, a meu mando, elaborou um terceiro documento, segundo o qual me doava um baú imenso, lotado de ouro, descrevendo suas características e insígnias para que, se necessário, eu pudesse provar que não o roubara. Finalmente, por um último documento de seu próprio punho, cedia-me centenas de acres de terra numa determinada província e um pequeno castelo ali existente de sua propriedade, que nele se instalava quando viajava para a região.
Havia ainda um empecilho: o tesoureiro. Ele era responsável pelas apropriações de todo o reino e contabilidade geral e o rei o fazia seu conselheiro para assuntos de compra e venda e do tesouro. Sendo funcionário ladino, não se convenceria de que sua majestade, a quem conhecia muito bem, estaria doando toda aquela fortuna e propriedade a um simples bufão, principalmente eu, Aldegundes, seu capacho e lixeira prediletos.
Pensando numa solução, mandei-o pedir mais duas taças de vinho. Ele foi e voltou. Tendo, após, o vinho chegado, fiz com que o rei ficasse de costas, derramando outras três gotas da poção na taça que se destinaria ao tesoureiro, ordenando-lhe que o mandasse chamar imediatamente aos seus aposentos. Quando o tesoureiro chegou, homem forte e hirsuto, eu estava a um canto, em posição de bufão, com cara de tolo. O rei, sorrindo, em obediência ao que eu o havia instruído, apontou-lhe a cadeira onde, adiante, sobre a mesa, estava a taça de vinho a ele reservada. O tesoureiro franziu a testa e por um instinto pareceu desconfiar, olhando-me interrogativamente, cravando-me aqueles olhos argutos. Eu estremeci e quase pus tudo a perder, controlando-me com enorme esforço, sentindo, não obstante, apesar do frio, o suor a escorrer-me pelo corpo. Mas ele foi e sentou-se. O rei segurou sua taça e aproximou-a para uma comemoração. Ele, desconfiado ainda, levantou a sua e brindou. O rei bebeu e o tesoureiro, sendo um súdito, foi obrigado a também beber.
Tendo recolocado a taça sobre a mesa, nada aconteceu de anormal e ele perguntou ao rei por que o chamara e qual o motivo daquela comemoração. O rei, sempre rindo, apontou-me, dizendo que o motivo era eu. O tesoureiro virou-se e olhou-me surpreso enquanto o rei gargalhava. Súbito, ele também começou a rir, abraçando-se ao rei. Aproveitei-me então e fiz com ele o mesmo teste que fizera com o rei, pedindo-lhe seu cordão e medalhão, e ele deu-mos. Em seguida, mostrei-lhe o documento feito por sua majestade, ordenando-lhe que providenciasse imediatamente o ouro bem como um meio de transporte adequado que disfarçasse a carga, pois partiria naquela mesma noite, em sigilo, saindo por um dos túneis secretos que só o rei e seus asseclas conheciam, e ele de bom humor a tudo assentiu.
Estando de novo a sós com o rei, saboreei a última vingança naquele dia, imaginando ser somente mais uma de tantas que planejava. Segurando uma daquelas taças, derramei vinho no chão, ordenando-lhe que o lambesse, e ele o fez exatamente como me obrigara fazer. Depois, pisei-o e golpeei-o várias vezes, com voluptuosa satisfação, tendo o cuidado de não lhe deixar marcas pelo rosto a fim de que nada desconfiassem, saindo após.
Perto da meia noite, procurei ao tesoureiro. Levava um saco às costas com roupas e objetos de uso pessoal. Ele se encontrava em seu gabinete, no palácio, e recebeu-me de mau humor, com cara sonolenta. Era evidente que dormira e pela rudeza de suas palavras e gestos, cheguei a temer que o plano fracassasse. Mas lembrei-me do alerta do bruxo, e sem qualquer gesto de resistência o tesoureiro real conduziu-me ante um túnel secreto, cuja entrada era disfarçada por uma estante fixa na parede, mas de parede móvel numa saleta contígua ao seu gabinete. Logo ele acendeu um archote e enveredamos pelo úmido túnel no subterrâneo do castelo, até um pátio fechado, para mim desconhecido, onde pequena carroça coberta atrelada a um cavalo ali estava. Ainda bastante contrariado, meu acompanhante e guia levantou uma braçada do feno jogado sobre a carroça, mostrando-me o largo baú envolto num pano púrpura. Pedi-lhe então que o abrisse, e ele, obedecendo-me, subiu imediatamente na carroça puxando o pano.
Minha cupidez cresceu mil vezes ao ver todas aquelas reluzentes moedas. Eram milhares, mais do que jamais vira em toda a minha vida e quase mergulhei sobre elas, tamanha a satisfação! Finalmente, dando-me por satisfeito, ele de novo fechou o baú e o lacrou com o lacre do tesouro real. Inútil e desnecessária providência, assim tomada por que eu exigira no momento em que ditara a missiva ao rei. Como última atenção, abriu-me o portão para que eu saísse e ao passar junto a ele cumprimentei-o do alto da carroça com gesto de cabeça, enviando-lhe sorriso de escárnio, ao que evidentemente ele não respondeu. Aquela partida era-me triunfal e já me via retornando dentro em pouco com pompa, cumulado de honras, seguido de um séquito de bajuladores a entrar pela porta principal do salão real, a convite de sua majestade.
Mas a vingança não terminaria ali, pensava com satisfação e acalanto, mal começava. Depois seria a vez da princesa. Ela me serviria e se prosternaria diante de mim, e todos iriam se admirar respeitando-me. Talvez não a envenenasse e nem ao rei, contentando-me em vê-los eternamente humilhados e ruminantes de ódio, sem forças para se libertarem de meu jugo. Ah, o demônio não era tão feio assim como o descreviam, ele sabia ser generoso com aqueles com quem se pactuava!
Ao pensar sobre isto, lembrei-me do bruxo e de meu compromisso em dar-lhe metade do ouro. Em movimento instintivo e repentino, puxei as rédeas do animal e freei a carroça, não me conformando em ter de dar-lhe tanto ouro, meu ouro! O prazer de possuir, de sentir-me rico, causava-me uma sensação estranha. Pulando para dentro da carroça, abracei ao baú como se abraça a uma coisa viva e apaixonante e febrilmente abri-o, rompendo o lacre, enterrando as mãos nas moedas, querendo senti-las mais intimamente, desejando que fizessem parte de meu corpo – e elas agora de fato faziam! Não, não dividiria o ouro com ninguém, nem uma moeda, quanto mais à metade delas! Aquilo representava minha felicidade, a riqueza e a vingança com que eu sonhara. Porém, precisava tomar o antídoto senão morreria e de nada me valeria o ouro!
Retomando a viagem, fui em direção da casa do bruxo. Mil pensamentos ainda faziam fervilhar minha cabeça, mas não encontrava a maneira de enganá-lo. Tendo penetrado o caminho que levava diretamente a sua casa, algo sobre a copa de uma pequena árvore assustou-me, levantando voo ruidosamente: era o corvo, que crocitou furioso – maldito espião – e temi ser novamente atacado! Mas não me atacou, antes me acompanhou durante o restante do trajeto, pousando de árvore em árvore, anunciando-se a cada vez que eu o alcançava!
Finalmente cheguei. O bruxo já me aguardava à porta daquela casa lúgubre, de candeia à mão, sorrindo ironicamente, estando já o corvo pousado sobre o seu ombro. Fazendo-me sinal, mandou-me que o ajudasse a retornar para a sala. Tendo feito o que me ordenara contei-lhe que conseguira tudo, mas estando de partida para minhas terras, necessitava tomar logo o antídoto. Assim que o tomasse, realizaria a prometida partilha. Ouvindo isso, o bruxo gargalhou sinistramente e senti calafrios a percorrerem minha espinha. Ainda rindo, ele me disse que não me daria agora o antídoto, mas somente depois de eu levá-lo à confraria dos bruxos. Estava velho demais para partir sozinho e não aguentaria chegar lá sem ter alguém para ajudá-lo. Protestei de várias maneiras, argumentando do perigo em viajar para mais longe com tanto ouro, havia muitos assaltantes pelas estradas e não pretendia desviar-me de minha rota. Ademais, isto não fazia parte de nosso pacto. Mas ele não quis saber de nada e proferiu sua sentença: se eu não o obedecesse, morreria envenenado. Trepidando de ódio tive de aceitar aquela traição, mas jurei em silêncio que se tivesse oportunidade me vingaria dele também. Se antes não desejara partilhar meu ouro, neste momento desejava muito menos.
A viagem até a confraria dos bruxos seria longa, levando semanas. Como ele não soubesse quanto tempo de vida dispunha, desejava se pôr a caminho imediatamente. Tendo tomado conhecimento deste fato, perguntei-lhe, ansioso, acerca do antídoto, pois o veneno faria efeito dentro de pouco mais de quatro dias. Em resposta, ele informou-me que estaria levando suficiente poção a fim de prorrogar o efeito letal de sete em sete dias, até chegarmos ao destino, onde me faria beber a dose definitiva. Soltando outra horrível gargalhada, o execrável aconselhou-me cuidar de que nada lhe acontecesse porquanto se tornava agora para mim carga mais preciosa do que o próprio ouro que eu carregava.
Partimos naquela mesma madrugada levando alguma bagagem, alimentos e um burro de cargas amarrado à carroça, de propriedade do bruxo. O corvo ia também ora voando para as copas do arvoredo, observando e trazendo informações para o seu dono, ora descansando sobre o seu ombro. Era realmente estranho como ambos se entendiam. O corvo falava-lhe ao ouvido e o bruxo assentia com a cabeça, soltando sons guturais. Isso me causava mal e temia a ambos. Por quatro dias viajamos sem novidade. Durante o dia nos escondíamos pelos matos ou bosques, à noite retomávamos a jornada, pois o luar era suficiente para clarear os caminhos. O bruxo era pessoa extremamente desagradável, ora a maldizer as mínimas coisas ora a gargalhar de forma assustadora. Antes de dormir, dava ordens ao corvo para que vigiasse o seu sono e invocava espíritos. Eu me afastava dele para tentar dormir melhor, porém o meu sono era interrompido e cheio de terríveis pesadelos. Na quarta manhã da viagem, perto do meio dia, acordei sobressaltado, estando o corvo a bicar-me e a puxar meus cabelos. O bruxo, encostado a uma árvore, gargalhava de lacrimejar, dizendo, afinal, passado o acesso de riso, que o mandara acordar-me a fim de que lhe preparasse a refeição. Isso me irritou ao extremo e senti-me novamente escravizado, tendo de servir a um dono mais insano e perigoso do que o primeiro. Que destino o meu!
Durante a refeição, ele me estendeu uma caneca contendo um líquido grosso e escuro, mandando-me que o bebesse, pois se tratava da primeira dose do antídoto. O líquido era amargo e engoli-o com repugnância sob o seu sorriso sarcástico e grasnos nervosos da negra ave. Naquele mesmo dia, comecei a suspeitar de que o bruxo não pretendia me libertar. Se alcançássemos à confraria me faria lá seu escravo. Uma vez ouvira dizer que todo aquele que descobrisse o esconderijo dos bruxos, seria aprisionado e os serviria até a morte, ou então, se escapasse, morreria amaldiçoado poucas horas depois. Mas com todo o ódio que lhe endereçava não poderia fugir e nem matá-lo, sob pena de morrer também!
Dois dias depois, tendo saído de um caminho secundário e meio abandonado, ouvimos ao longe o rumor de vozes e cantos. Seria uma taberna localizada na estrada, falou o bruxo, e isto lhe despertou o desejo de tomar vinho. Como também necessitássemos de alimentos ele me ordenou que montasse o burro e fosse lá adquirir essas coisas. Lá chegando, fui alvo de piadas e troças. Adquiri pão, toucinho e vinho. Ao enfiar a mão na algibeira para retirar as moedas e pagar ao taberneiro meus dedos tocaram em qualquer coisa estranha e vi tratar-se do pequeno recipiente, contendo um resto da poção. Esquecera-me dele, tendo deixado o recipiente maior na carroça junto aos meus pertences, e uma rodopiante idéia agitou os meus pensamentos. Após pagar ao taberneiro saí pelos fundos, indo à estrebaria onde, escondido de todos e certificando-me de que ali o corvo não conseguiria vigiar-me, derramei toda a poção no vinho. Meu coração batia descompassadamente e mal conseguia conter a excitação.
O bruxo, ao ver o vinho e o alimento que eu trouxera, sorriu e estendeu-me as mãos. Passei-lhes as coisas e ele as cheirou ruidosamente, qual um bicho faminto e sedento. Neste instante, o corvo mergulhou e pousou sobre sua mão, grasnando agitadamente, chamando-lhe a atenção. Meu corpo todo tremeu e temi que a maldita ave o alertasse de algo. Ela gritou mais, bateu as asas e pulou em seu braço. Ele riu e abriu o pano que envolvia o alimento, cortando um pedaço do toucinho, enfiando-o em seu bico. A ave, então, satisfeita, foi-se dentre as sombras, deixando-me aliviado.
Virando-se sobre o banco da carroça, o nauseabundo retirou de dentro da sacola uma pequena caneca e a estendeu-me para que a enchesse. Minhas mãos tremiam, eu fazia esforço hercúleo para dominar-me enquanto o vinho escorregava. Quase se babando, abriu as mandíbulas e derramou o vinho goela adentro, pedindo mais. Repeti a dose, ele tomou mais dois goles, estalando a língua, elogiando. Tenso, quase sem respirar, estudava-o naquela escuridão, a qual era aliviada pela luminosidade da lua crescente. Se a poção iria fazer efeito em seu próprio criador, dentro em pouco eu saberia.
Em movimento brusco, ele novamente se virou e remexeu na sacola, retirando outra caneca de metal, ordenando-me que bebesse. Pensei recusar, mas temi que ele desconfiasse de algo e resolvi enganá-lo, enchendo-a lentamente, tentando ganhar tempo. Depositei a bilha no chão e noutra série de movimentos lentos encarei-o. Ele me olhava com atenção e silenciosamente. Mas eu não podia beber, assim, fingindo acidente, larguei a caneca derramando o vinho no chão, e esperei por uma explosão de imprecações. A explosão não aconteceu, ele somente gargalhou. Seria esta a maneira dele mostrar-se submisso? Resolvido a experimentá-lo pedi-lhe outra caneca. Ele imediatamente atendeu-me. Depois solicitei-lhe que descesse para bebermos no chão e se arrastando feito um réptil o bruxo desceu, apoiando-se na carroça. Sem dúvida a poção voltava a funcionar, desta feita sobre o seu criador. Era o feitiço se voltando contra o feiticeiro, conforme reza o adágio.
Sem perda de tempo, ordenei-lhe que me desse o antídoto definitivo. Ele me informou que precisaria antes prepará-lo. Mandei-o, pois, que o fizesse e sob a luz do lampião ele remexeu em sua arca, retirando recipientes e ingredientes, passando a misturá-los e a invocar espíritos. Tendo-o preparado, estendeu-me. Entretanto, no exato instante em que levava a mão para segurá-lo, o maldito corvo, desconfiando da trama, atacou-me furiosamente, quase me vazando os olhos com as garras. Caí ao chão, sangrando e estonteado, procurando defender-me do feroz atacante. Ele pulava sobre mim causando-me outros ferimentos, rasgando-me a roupa. Gritei para o bruxo a fim de que o mandasse parar, porém por um sortilégio muito forte que o ligava à ave, ele não me obedecia, permanecendo imóvel.
Consegui levantar-me e corri para as árvores, tendo-o sobre minha cabeça a bicar-me e a ferir-me impiedosamente. Ali chegando, tropecei e caí; por sorte, sobre um galho seco que de imediato segurei-o, desferindo-o sobre o agressor, acertando-o em cheio no primeiro golpe apesar da escuridão. A ave caiu e se debateu estonteada; aproveitando-me disto lancei-me sobre ela, golpeando-a outras vezes, com raiva, até sentir que seu sangue espirrava por todos os lados. No momento em que isso acontecia, como se a alma da negra ave fosse a alma negra do bruxo, ele gritou e rolou por terra. Corri para lá e sequer lancei-lhe um olhar, preocupando-me tão somente em salvar o antídoto. Ele havia se derramado, não obstante restara ainda o suficiente e bebi-o com mão trêmula e peito arfante, nada sentindo de diferente, como, aliás, nada havia sentido ao ingerir o veneno.
Sacudindo o horrendo homem, fi-lo beber mais vinho, antes que se tornasse totalmente consciente de tudo, e mansamente ele permaneceu aguardando as minhas ordens. Tinha-o agora sob domínio e fiquei a pensar o que poderia obter usando sua feitiçaria. Tinha ouro, terras e liberdade e queria agora todos os prazeres que estas coisas poderiam me proporcionar, mas por quanto tempo? A vida é tão curta, pensava ainda, logo a gente se transforma num farrapo como esse andrajoso ser. Bom seria eu viver muitos anos, com juventude e disposição, eternamente, se possível, ainda mais agora que me tornara rico e senhor!
Tendo pensado bastante, acorreu-me uma idéia. Perguntei-lhe se poderia prolongar-me a vida eternamente e ele assentiu com a cabeça. Ordenei-lhe então que me explicasse como faria isto. Ele me informou conhecer o segredo de uma poção que aumentava indefinidamente os anos de vida de uma pessoa. Entretanto, nunca a tinha preparado por que ela não surtiria efeito nele mesmo, e se a preparasse para alguém aconteceria uma troca. Cada vez mais curioso, quis saber que troca seria essa. Ele me explicou que a partir do momento em que uma pessoa a bebesse, cada dia vivido por ela representaria dois dias a menos da existência do bruxo, abreviando, portanto, o seu tempo na Terra. Por isso, obviamente, nunca a preparara.
De novo pus-me a refletir. O bruxo, ao que tudo indicava, não teria mesmo muito tempo de vida, logo não faria a menor diferença se morresse alguns dias antes. Se morresse antes de chegar à confraria, azar dele, pois de todos os modos não lhe daria o ouro, sobretudo porque novamente o recuperara todo e à liberdade. Tendo isto em mente, ordenei-lhe que fizesse a poção da longevidade, mas ainda que sob os efeitos da poção, seu instinto de sobrevivência gritou mais alto e recusou-se. Ameacei bater-lhe, obrigando-o também a tomar mais vinho e não sei bem se somente pela ameaça, pelo reforço da poção ou pelos espíritos inebriantes do vinho, ele acabou concordando.
Explicou-me então haver uma dificuldade e um problema: primeiro, a poção teria de ser preparada sob os primeiros raios noturnos da lua cheia e exposta sete noites à mesma lua; segundo, precisaria sacrificar uma serpente e utilizar o seu veneno. Faltavam dois dias para o surgimento da lua cheia, pensei eu. Isto eu podia esperar, aguentando ainda os sete dias restantes, mas quanto à serpente? Cada vez mais interessado no assunto, perguntei-lhe se encontraria uma e a aprisionaria, porém não me respondeu. Foi preciso que usasse de mais energia para fazê-lo falar e ele confirmou, dizendo saber preparar um óleo que tinha o poder de impregnar com seu odor tudo aquilo em que fosse derramado, atraindo serpes. Satisfeito, ordenei-lhe que o fizesse imediatamente. Ele se arrastou até a arca começando a misturar líquidos, a invocar demônios e almas de serpentes. Tendo terminado, informou-me que deveríamos procurar local adequado onde usá-lo. Montamos na carroça e partimos dali. Embora ele estivesse sob o efeito da poção, era um bruxo, e não confiava inteiramente em sua submissão, haja vista em certos momentos demonstrar resistência, por isso dei-lhe mais dois goles do vinho.
Num determinado local, junto a uma pedreira, paramos e descemos. Apoiado em mim, ele se aproximou da pedreira, derramando nela o óleo, mandando-me que voltasse para a carroça e lá permanecesse. Sobre a carroça pude vê-lo, ainda que imperfeitamente, acocorado feito ave de rapina, banhado pela luz pálida da lua que imprimia à cena um efeito sinistro e assustador, como se colorisse a própria morte. Isso produziu em mim uma espécie de terror surdo e grande repulsa. Mas eu tinha ido longe demais para recuar e resolvi superar aquela reação, mormente quando todas as venturas do mundo aguardavam-me. Valeria a pena tamanho sacrifício! De repente, o bruxo se pôs a soltar sons que invocavam serpentes. Logo pude ver duas delas se arrastando e se enrodilhando diante dele. Elas assim permaneceram e ele continuou a chamar, até aproximar-se uma grande, maior do que as duas anteriores. Ela parou e ele fez um movimento de mão, agora falando, segurando-a pela cabeça e a levantando. Em seguida, forçou-a destilar gotas de veneno numa caneca de metal. Ao vê-lo caminhar de volta em passos arrastados, trazendo o repulsivo réptil, fiquei horrorizado, preparando-me para pular e correr, temendo que ele o fosse jogar sobre mim. Chegando à carroça ele arfava muito e apoiou-se nela, levantando a mão, mostrando-me a serpente que se enroscava e se remexia em seu braço. O bruxo era, verdadeiramente, grande conhecedor de magia negra e artes de encantamento e aquilo vinha reforçar aos meus olhos a fama que tinha adquirido.
Tendo recuperado o fôlego, disse-me que precisaria estrangulá-la, mas não teria forças para tal, pedindo-me ajuda. Já fora da carroça, neguei-me veementemente a isso, ordenando-lhe que fizesse tudo sozinho, reunindo todas as suas forças. A serpente, parecendo ter entendido que seria sacrificada, levantou a cauda e arremessou-a sobre o rosto do bruxo, assustando-o. Tomado de pavor, gritei-lhe para que a matasse. Ele, então, segurou-a com ambas as mãos e começou a apertá-la. Ela se enrodilhava e lutava e ele gemia e se arcava. Foi uma luta titânica que me consumiu, também, grande dose de energia, tal o terror que de mim se apossara. Finalmente o bruxo caiu sobre o réptil, opresso, gritando com voz rouca, implorando ajuda. Hesitei, mas ante os seguidos apelos aproximei-me, verificando que a serpente de fato houvera sido estrangulada e ajudei-o a se levantar.
Dia seguinte, ele estava mal humorado. Pouco comeu e surpreendi-o em várias oportunidades a olhar-me estranhamente, expressando ódio na fisionomia. Nervoso, dei-lhe um pouco de vinho e ele o tomou. Depois, começou a tirar o couro da serpente, cantando e invocando espíritos. Feito isso o enrolou num pano, tendo o cuidado de excluir as presas.
À meia noite do outro dia, ele começou a preparar a poção, tendo feito fogo e fervido ingredientes; em certo instante mandou-me que me aproximasse e estendesse-lhe a mão esquerda. Obedeci e ele me espetou um espinho num dos dedos, fazendo-o sangrar. A seguir, tomou a caneca de metal onde havia coletado o veneno da serpente e me espremeu o dedo, derramando uma gota de sangue. Mal o sangue se misturou ao veneno ele gritou e esbravejou, como se amaldiçoasse, virando-se para os quatro cantos, falando e gesticulando. Quase desmaiei de medo. Senti as pernas tremerem e fraquejarem, não sabendo ao certo se ele estaria me enganando ou de fato produzindo a poção que o obrigava produzir. Náuseas e tonturas sobrevieram-me, pois além do medo daquele ritual macabro, o cheiro forte daquelas coisas na fervura causava-me repulsa. Sempre invocando, ele derramou o conteúdo da caneca no caldeirão, terminando o ritual por aquela noite, apagando o fogo e indo dormir.
Como eu determinasse que não partíssemos até que a poção estivesse pronta, na noite seguinte ele realizou o segundo ritual no mesmo local, acendendo o fogo, invocando conforme fizera anteriormente, tirando-me outra gota de sangue e a lançando diretamente no caldeirão. Assim foi feito durante todo o período de manifestação da lua cheia. Na última noite, após tirar-me a última gota de sangue, ele deitou o couro da serpente diante do caldeirão, untou-o com o óleo antes utilizado para atraí-la, gritou e falou palavras estranhas. Deixou-o ali, afastando-se um passo. Logo a forma do espírito da serpente sacrificada viria aninhar-se no couro. Ele a tomou com ambas as mãos e invocando demônios derramou a forma espiritual da serpente no caldeirão fervente. A seguir, mergulhou pela primeira vez a caneca na fervura, mexendo-a como se a lavasse, retirando-a com a poção e a estendendo a mim para que eu a bebesse. Tenso por ter presenciado todas aquelas coisas e não confiante ainda na sua total submissão aos meus desejos, ordenei-lhe que jurasse em nome de todos os demônios que a poção era verdadeira e caso estivesse mentindo, sua alma seria eternamente prisioneira deles, e ele jurou.
A poção não faria efeito se tomada uma única vez, necessitando tomá-la sete dias consecutivos à meia noite, entrando este ritual pelos dias da lua minguante. Dessa maneira, aquela seria somente a primeira dose. Num inexplicável e súbito impulso quase arranquei a caneca das mãos do bruxo, mirando o líquido, sobrevindo-me novamente náuseas que quase me fizeram perder a coragem. Porém, trazendo à mente o quadro acalentado por todos aqueles dias, vi-me senhor e próspero, vivendo na abundância e eternamente, gozando prazeres e humilhando inimigos, e bebi a largos goles, quase vomitando ao final. Recuperando-me, contudo, decidi partir imediatamente abandonando ao bruxo. A fim de que não me visse partir, obriguei-o a tomar todo o vinho restante, embebedando-o. Utilizando a mesma bilha, guardei nela a poção e em seguida amarrei o burro numa árvore, descendo a arca do velho asqueroso juntamente com os outros objetos de seu uso pessoal. Num ato incomum de solidariedade, dividi com ele partes de um coelho apanhado em armadilha; afinal, aquilo poderia ser seu último alimento. Dali em diante assumia o meu próprio destino, ele que se danasse sozinho! Montei na carroça, e com nojo e desprezo lancei-lhe derradeiro olhar, vendo-o dormir a sono solto, deixando-o definitivamente.
Os dias que se seguiram, gastei-os quase todos retornando por onde houvéramos percorrido, conquanto o bruxo forçara-me viajar em direção oposta ao que eu pretendia. Por dois dias e duas noites permanecera abrigado em pequena e rasa caverna, a fim de proteger-me das seguidas pancadas de chuvas que me impediam viajar. Nesses dois dias, quando a lua se espremia dentre nuvens – exatamente à meia noite – sob as frias e úmidas paredes da gruta, eu tomava da poção, sendo invadido de arrepios e calafrios. Finalmente, na sétima noite, longe do lugar onde abandonara o bruxo à própria sorte, tomei a última dose, lançando fora o que restara da poção, quebrando a bilha de encontro a uma árvore. Afora aquelas rápidas e já conhecidas reações, nada mais sentira, exceto ao crescer da certeza de que a poção redundaria em sucesso e viveria eternamente rico e senhor!
Mas o pior estava por acontecer. Dois dias depois da última dose, enquanto viajava cautelosamente por caminhos secundários sob a palidez da argêntea lua, procurando desviar-me de vilas e lugarejos, senti-me mal. Uma sensação de desmaio abraçou-me e parei a carroça, deitando-me na relva. Um suor surpreendente veio lavar-me a testa. Senti que enfraquecia, começando a ver nuvens e sombras diante de meu rosto. Súbito, as sombras criaram vida e forma e a cara horrível do bruxo surgiu enorme, rindo pavorosamente, acompanhada de um séquito de seres ígneos que se revolviam numa dança macabra. Impossibilitado de mover-me, via a tudo paralisado, escutando de novo aquela voz que tão bem conhecia, agora mil vezes mais abominável:
“Mortal idiota! Queres viver eternamente? Não sabes que este poder somente tem Lúcifer, por seu próprio e indissolúvel selo com o mal – ele, o senhor indiscutível da ciência maligna e execranda, da qual sou somente um discípulo? Não, não sabes por que nada és além de um verme. Como pudeste crer que somente ingerindo uma poção, viverias para sempre e sem pagares um tributo? Ao fazeres isto e roubares alguns dias de minha existência, deixando-me morrer de inanição, levando o meu ouro, atraíste uma horrível maldição. Um vínculo muito forte foi criado entre tua insignificante alma, a minha e os poderes das trevas. Agora não poderás mais recuar. O ouro te será maldito, porque mais ainda ele atrairá tua cobiça. Porém, ao mesmo tempo, não poderás passar um único dia longe dele, ou o perderás. Por tê-lo roubado de mim e me tirado a oportunidade de ser aceito na confraria dos bruxos, fazendo parte da grande mesa, não poderás ficar longe do ouro e não gastarás uma única moeda que não venha redundar-te em prejuízo ou desgosto. Viverás muitos anos, não eternamente como supuseste, porém muitos e tantos que desejarás morrer, tal o tédio de tua existência. Todavia, ao morreres, não estarás livre dessa maldição. Aqui estaremos para nos apossarmos de tua alma, ó infeliz e ignorante mortal!"
Se feio sou não sei como estaria a expressão de meu rosto naquele momento. Devia estar horrível, porque sentia os cabelos arrepiarem e os olhos quase saltarem das órbitas. Mesmo assim consegui balbuciar algumas palavras, dizendo-me arrependido e disposto a pagar pelo meu erro para livrar-me da maldição. O bruxo riu estrepitosamente, quase estourando os meus ouvidos e respondeu:
"Tarde demais. És tão repelente que não possuías uma virtude sequer antes de ingerires a poção, muito menos agora a possuís. Desista, homenzinho, estás irremediavelmente perdido. Somente uma virtude desperta em teu coração poderia dissolver os fortes grilhões a que te aprisionastes, e teu coração é duro como a pedra, ah...ah...ah...! Toma, eis o novo selo de nossa aliança!".
Ele levantou a mão e lançou sobre mim a alma da serpente que não se dissolvera no caldeirão como eu supusera. Ela picou-me o braço e queimou-me por dentro fazendo-me desmaiar tamanha a dor. Ao acordar, o sol já se levantava. Eu estava tonto e com sede. Trôpego andei até a carroça puxada que fora para mais adiante pelo animal que calmamente pastava, e bebi água. Meu braço ardia. Ao levantar a manga da camisa vi com espanto a dupla marca das presas da serpente, marcas estas que carrego até hoje, vendo o sangue ressecado, escorrido dos ferimentos. Apavorado, pulei para dentro da carroça e abri o baú, verificando com alívio o ouro intacto, lembrando-me das palavras do bruxo.
Sem alternativas me pus a caminho, ainda enfraquecido, buscando um local mais escondido para passar o dia, pois onde me encontrava poderia ser surpreendido, e entrei no bosque. Entretanto, as imagens mentais não me abandonavam, mantendo-se perfeitamente nítidas em minha memória, acompanhadas do persistente eco das palavras do bruxo em minha consciência.
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https://arcadeouro.blogspot.com/2020/05/a-maldicao-e-virtude-apenas-um-conto-de.html
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