terça-feira, 4 de abril de 2023

É APENAS UM FILME! - DZONGSAR K. RINPOCHE

 

É APENAS UM FILME! - DZONGSAR K. RINPOCHE



"Apenas suponha que nascemos em uma sala de cinema. Nós não sabemos que o que está acontecendo na nossa frente é apenas uma projeção. Nós não sabemos que é apenas um filme, apenas uma película, e que os eventos no filme não são reais – que eles não têm existência verdadeira. Tudo o que vemos nessa tela – amor, ódio, violência, suspense, emoções – são na verdade apenas o efeito da luz projetada através de celuloide. Todavia nunca ninguém nos disse isso, então apenas sentamos e assistimos, fixados no filme. Se alguém tenta atrair nossa atenção, nós dizemos: ‘Cale a boca! ’ Mesmo que nós tenhamos algo importante a fazer, não queremos fazê-lo. Estamos completamente absortos e cegos ao fato de que essa projeção é completamente inútil.

Agora, suponha que há alguém na cadeira próxima a nós que diz: ‘Olha, isso é apenas um filme. Não é real. Isso não está realmente acontecendo. É apenas uma projeção’. Há uma chance de nós entendermos que o que estamos vendo é na verdade um filme, que é irreal e não possui essência.

Isto não significa que automaticamente podemos nos levantar e sair do cinema. Nós não temos que fazer isso. Nós podemos apenas relaxar e simplesmente observar o caso de amor, o suspense ou o que quer que esteja passando. Podemos experimentar a sua intensidade. E se temos uma certa confiança de que é apenas uma projeção, então podemos retroceder, avançar ou jogar o filme novamente, como quisermos. E nós temos a opção de deixar sempre que quisermos, e voltar em outro momento para assistir novamente. Uma vez que estamos certos de que podemos deixar a qualquer momento que quisermos, podemos não sentir compelidos a fazê-lo. Podemos optar por sentar confortavelmente e assistir.

Às vezes, uma sequência do filme pode dominar nossas emoções. Um momento trágico pode acertar o nosso ponto fraco e nós somos levados por isso. Mas agora, algo em nosso coração está nos dizendo que nós sabemos que não é real, que não é um grande problema.

Isto é o que o praticante do dharma precisa entender – que toda o samsara ou nirvana, é tão sem essência ou ilusório como esse filme. Até que nós vejamos isso, vai ser muito difícil para o dharma aprofundar em nossas mentes. Vamos sempre ser levados, seduzidos pela beleza e glória deste mundo, por todo o aparente sucesso e fracasso. No entanto, uma vez que vejamos, mesmo que apenas por um segundo, que estas aparições não são reais, vamos ganhar uma certa confiança. Isso não significa que temos que correr para o Nepal ou Índia e tornar-se um monge ou monja. Nós ainda podemos manter trabalhar, usar terno e gravata e ir com a nossa pasta para o escritório todos os dias. Nós ainda podemos nos apaixonar, oferecer aos nossos entes queridos flores, casar. Mas, em algum lugar dentro de você te diz que tudo isso é vazio de essência.

É muito importante ter essa visão. Se temos um pequeno vislumbre em toda a nossa vida, podemos ser felizes pelo o resto do tempo com apenas a memória desse vislumbre.

Pode acontecer de alguém sussurrar para nós, ‘Ei! É apenas um filme’, e não ouvirmos por estarmos distraídos. Talvez naquele momento, ocorre um grande acidente de carro no filme ou uma música alta, então nós simplesmente não ouvimos a mensagem. Ou então, talvez, nós escutamos a mensagem, mas o nosso ego interpreta erroneamente esta informação. Continuamos confusos e acreditamos que existe algo de verdadeiro e real no filme, afinal. Por que isso acontece? Isso acontece porque não temos mérito. O mérito é extremamente importante. Claro, que a inteligência, ou prajna, é importante. Compaixão ou Karuna, é importante. Mas o mérito é fundamental. Sem mérito, somos como um mendigo ignorante, analfabeto que ganha milhões na loteria, mas não sabe o que fazer com o dinheiro e perde imediatamente.

Mas, suponha que nós temos um pouco de mérito e que a mensagem da pessoa sussurrando chega para nós. Então, como budistas, temos diferentes opções. Do ponto de vista do Budismo Theravada, podemos nos levantar e deixar a sala de cinema, ou fechamos os olhos, para não sermos levados pelo filme. Nós colocamos um fim ao sofrimento dessa forma. No nível Mahayana, nós reduzimos o nosso sofrimento através da compreensão de que o filme não é real, que tudo é uma projeção e vazio. Nós não paramos de assistir o filme, mas vemos que não tem existência inerente. Além disso, estamos preocupados com os outros no cinema. Finalmente, no Vajrayana, sabemos que ele é apenas um filme, não estamos enganados, e apenas apreciamos o show. Quanto mais emoção o filme evoca em nós, mais nós apreciamos o brilho da produção. Nós compartilhamos os nossos conhecimentos com os nossos companheiros de espetáculo, que, nós confiamos, e que também são capazes de apreciar o que nós vemos.

Por outro lado, esta transformação – de sermos pegos pelo filme, perceber o vazio dos eventos, cuidar exclusivamente do bem-estar dos outros – pode levar muito, muito tempo. É por isso que no Vajrayana nos movemos pela a via rápida e acumulamos méritos através da devoção. Nós confiamos na pessoa que está sussurrando para nós e possui um entendimento que o libertou. Não só assimilamos a informação que ele está nos dando, mas também apreciamos a sua liberdade de espírito e a profundidade do seu ser. Sabemos que temos o potencial para a libertação também, e isso nos faz apreciá-lo ainda mais. Um único momento de devoção, apenas uma fração de segundo, apenas um pouco de devoção, traz imenso mérito. Se estamos em sintonia com a pessoa que sussurrou para nós, ele pode nos ajudar a descobrir o verdadeiro interior do amante do filme. Ele pode fazer-nos ver como o resto do público é pego, e como é desnecessário tudo isso.

Sem que tenhamos que confiar em nossa própria luta confusa para entender o caminho, essa pessoa nos leva a uma compreensão do que é que estamos vendo. Nós, então, nos tornamos alguém que pode se sentar e apreciar o show. E talvez nós possamos sussurrar para outros também."

Por Dzongsar Khyentse Rinpoche