segunda-feira, 26 de setembro de 2022

As divindades femininas: No princípio, eram as Deusas

 

As divindades femininas: No princípio, eram as Deusas

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Nos quatro cantos do mundo, as primeiras divindades eram mulheres: Pótnia, Astarte, Ísis, Amaterazu, Nu Gua. Nas antigas sociedades, elas representavam o começo e o fim de tudo. Hoje, ajudam a entender o passado remoto dos homens.

15px; margin: 0px 0px 1.625em; outline: 0px; padding: 0px; vertical-align: baseline;">Em Çatal Huyuk, na Turquia, a estatueta de uma mulher sentada num trono e ladeada por duas panteras, em cujas cabeças ela coloca as mãos, sugere ao mesmo tempo a imagem da mãe e da senhora da natureza. Suas formas generosas — quadris largos e seios grandes— reforçam ainda mais essa idéia. O nome da figura feminina é Pótnia, a deusa de Çatal Huyuk, a mais antiga cidade que se conhece do período Neolítico, cerca de 10 mil anos atrás. De Pótnia nasceram outras divindades femininas também adoradas pelos homens pré- históricos. Sua estatueta, esculpida por volta de 6500 a.C., foi uma das muitas encontradas na Europa e no Oriente Médio, algumas mais antigas, do Paleolítico Superior (de 50 mil a 10 mil anos atrás).Essas descobertas levaram historiadores e arqueólogos a sugerir que, bem antes de venerar deuses masculinos, os antepassados do homem teriam adorado as deusas, cujo reinado chegou até a Idade do Bronze, há cerca de 5 mil anos. Não se sabe a rigor o exato significado daquelas estatuetas, até porque pouco ou quase nada se conhece dos costumes dos homens pré-históricos. Mas não resta dúvida de que por um bom tempo as deusas reinaram sozinhas, deixando os poderes masculinos à sombra. Em seu livro Um é o outro, a filósofa e professora francesa Elisabeth Badinter tenta explicar a supremacia feminina a partir do que se supõe teriam sido as relações entre homens e mulheres naquelas épocas distantes.

A idéia é que o homem do Neolítico—ao contrário dos seus antecessores do Paleolítico, que eram caçadores, e dos seus descendentes da Idade do Bronze, guerreiros—dedicava-se à criação de rebanhos e à agricultura. Ou seja, já não era necessário arriscar a vida para sobreviver. Nesses tempos relativamente pacíficos, em que a força bruta não contava tanto como fator de prestígio e as diferenças sociais entre os sexos se estreitavam, é bem possível que deusas—e não deuses—tivessem encarnado as principais virtudes da cultura neolítica.

Entre as centenas de estatuetas encontradas, algumas têm em comum os seios fartos e os quadris volumosos como Pótnia. Talvez a mais famosa seja a Vênus de Willendorf, encontrada às margens do rio Danúbio, na Europa Central. Nela, os seios, as nádegas e o ventre formam uma massa compacta, de onde emergem a cabeça e as pernas — na verdade, pequenos tocos. Igualmente reveladora é a Vênus de Lespugne, descoberta na França: embora mais estilizada, guarda as mesmas características de sua irmã de Willendorf.

Mas, das esculturas pré- históricas encontradas até hoje, são raras as que apresentam os traços femininos tão exagerados — o que dá margem a um debate sobre o que significava afinal a figura feminina (devidamente divinizada) nos primórdios das sociedades humanas. Os historiadores tendem a achar que os primeiros homens a viver em grupos organizados davam mais importância à sexualidade feminina do que à fertilidade, embora não seja nada fácil separar uma coisa da outra. No entanto. a imagem à qual acabaram associadas foi a da maternidade. Há quem não concorde. “Traduzir o culto dos ancestrais às deusas como simples exaltação à fertilidade é simplificar demais”, comenta a historiadora e antropóloga Norma Telles, da PUC de São Paulo, que estuda mitologia praticamente desde criança. “Na realidade, a deusa não é aquela que só gera. Ela é também guerreira, doadora das artes da civilização, criadora do céu, do tecido e da cerâmica, entre muitas outras coisas.”De fato, em muitos mitos, a deusa aparece como quem dá o grão aos homens, e não apenas no sentido literal de nutrição. Assim, por exemplo, Deméter, venerada pelos gregos como a deusa da colheita, ajudava a cultivar a terra — arar, semear, colher e transformar os grãos em farinha e depois em pão. Deméter ensinava ainda os homens a atrelar as animais e a se organizar. Os gregos explicaram a origem do mundo com outro mito feminino: o da deusa Gaia. Doadora da sabedoria aos homens, ela limitou o Caos—o espaço infinito—e criou um ser igual a ela própria: Urano, o céu estrelado.

Pouco depois, Eros, símbolo do amor universal, fez com que Gaia e Urano se unissem. Desse casamento nasceram muitos filhos e, assim, a Terra foi povoada. A crença de que o Universo foi criado por uma divindade feminina está presente em quase toda parte.

Ísis, a mais antiga deusa do Egito, tinha dado a luz ao Sol. Na Índia, Aditi era a deusa-mãe de tudo que existe no céu. Na Mesopotâmia, Astarte, uma das mais cultuadas deusas do Oriente Médio, era a verdadeira soberana do mundo, que eliminava o velho e gerava o novo. Essa idéia aparece com clareza nas efígies datadas de 2 300 a.C., que mostram Astarte sentada sobre um cadáver. Também para os chineses foi uma deusa—Nu Gua — quem criou a humanidade. Seu culto apareceu durante o período da dinastia Han (202 a.C.-220 d.C.). Representada com cabeça de mulher e corpo de serpente, a venerável Nu Gua encarnava a ordem e a tranqüilidade.

Os chineses dizem que, cavando barro do chão, ela moldou uma figura que, para sua surpresa, ganhou vida e movimento próprio. Entusiasmada, a deusa continuou a moldar figuras, mas a natureza mortal de suas criaturas a obrigava a repetir eternamente o trabalho. Por isso, Nu Gua decidiu que os seres deviam se acasalar para se perpetuarem—daí também ela ser considerada pelos antigos chineses a deusa do casamento. Do outro lado do mundo, na América pré – colombiana, os astecas tinham em Tlauteutli sua deusa da criação. Para eles, o Universo fora feito de seu corpo. Os maias tinham igualmente sua deusa-mãe. Era Ix Chel. De sua união com o deus Itzamná nasceram os outros deuses e os homens.

Com o passar do tempo, deuses e homens passaram a dividir com as deusas o espaço no Panteão, o lugar reservado às divindades. Para Elisabeth Badinter, isso acontece quando a noção de casal vai deitando raízes nas sociedades. Pouco a pouco, da Europa Ocidental ao Oriente, “reconhece-se que é preciso ser dois para procriar e produzir”, escreve ela. Mas o culto à deusa – mãe ainda não é substituído pelo do deus – pai. O casal divino passa a ser venerado em conjunto. As deusas só serão destronadas com o advento das religiões monoteístas, que admitem um só deus, masculino. Com a difusão do cristianismo, as antigas deusas são banidas do imaginário popular.

No Ocidente, algumas acabaram associadas à Virgem Maria, mãe do Deus dos cristãos, outras se transformaram em santas. Mas outras ou foram excluídas da história ou acusadas pelos padres de demônios e prostitutas. As deusas das culturas indo-européias tinham em comum o poder de criar, preservar e destruir—davam a vida e recebiam de volta o que se desfazia. Esse aspecto destrutivo das divindades femininas foi o mais atacado pelos inimigos do politeísmo. A suméria Astarte, por exemplo, não escaparia à ira nem dos profetas bíblicos nem dos primeiros cristãos: para uns e outros, ela era a encarnação do diabo.

No império babilônico, Astarte foi venerada sob o nome de Ishtar, que quer dizer estrela. Nos escritos babilônicos, ela é a luz do mundo, a que abre o ventre, faz justiça, dá a força e perdoa. A Bíblia, porém, a descreveria como uma acabada prostituta. A importância dada ao lado violento, destrutivo, talvez explique por que a deusa hindu Kali Ma aparece no filme de Steven Spielberg, O templo da perdição, como a encarnação da violência. Ela é a sanguinária figura em nome da qual se matam e torturam adultos e se escravizam crianças.

No entanto, para os hindus, mais especialmente para os tantras — adeptos de uma derivação do hinduísmo —, Kali é a deusa da transformação e nesse sentido mais filosófico é que ela é destruidora, da mesma forma como a passagem do tempo destrói. Representada como uma mulher negra com quatro braços e uma serpente na cintura, pode aparecer também com um colar de crânios no colo e uma cabeça em cada mão.

Em seus templos, espalhados por toda a Índia, realizavam-se sacrifícios de búfalos e cabras. “Para os orientais, Kali é a desintegração contida na vida, visão essa que nós ocidentais não temos”, interpreta a antropóloga Norma Telles. Se Kali foi vista como deusa sanguinária, outras divindades compensavam tanta violência. Sarasvati, a deusa dos rios, era para os hindus a inventora de todas as artes da civilização, como o calendário, a Matemática, o alfabeto original e até os Vedas, o texto sagrado do hinduísmo.

Também na América pré-colombiana, sobretudo entre os astecas, o culto às deusas e deuses incluía muitas vezes sacrifícios humanos. A deusa Tlauteutli é um bom exemplo. Um dia, os deuses descobriram que ela ficaria estéril, a menos que fosse alimentada de corações humanos. Na verdade, os astecas tinham uma visão apocalíptica do mundo: se não alimentassem a deusa, a Terra se acabaria.