Nos anos 70, por muito tempo, frequentei um Centro de Umbanda, no bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro [onde morei de 1970 a 1983 e trabalhei de motorista na TV Globo, de 71 a 78].
O "Centro de Umbanda de Vovó Cambina D’Angola", situa-se na pequena localidade denominada Grotão [não sei se, após tantos e tantos anos, continua no mesmo local]. O acesso é por um dos portões do 'Jardim', na Rua Pacheco Leão 1235, próximo ao fim de linha do ônibus [409]Horto - Praça Sãez Pena, na Tijuca.
Ali também se localiza o moderno e enorme edifício sede do SERPRO [Serviço de Processamento de Dados do Governo Federal].
Os moradores do Grotão, são todos, praticamente, funcionários ou aposentados do Jardim Botânico. Por sorte aluguei, na 'surdina', um quartinho na casa de uma viúva e morei, naquele recanto da Zona Sul, por quase 13 anos. Era, e ainda deve ser, terminantemente proibido residir alguém naquele local que não fosse funcionário daquela repartição: mulher, filho ou parente próximo dele. Fui levando com a 'barriga' e consegui ficar todo esse tempo. O Grotão é uma parte da Floresta da Tijuca que se inicía por aquele lado. Muitas vezes, quando levantava pela manhã, dava de cara com animais selvagens, 'bisbilhotando' pelo quintal sem cerca. Tinha de enxotá-los com galhos inofensivos. Todos os animais daquela floresta, eram e são protegidos por lei. Sempre quando tinha sessão no 'Centro', que geralmente amanhecia o dia, eu estava lá. Comecei a gostar do ambiente. Me acostumei à paciência e humildade dos 'Pretos Velhos'. Os cânticos e repiques dos tambores, varando as madrugadas. Nas segundas-feiras: dia dos exus, curiava [bebia]com seu 7, exu Toquinho, seu Boiadeiro, Maria Padilha, Pomba Gira...
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Nas sextas-feiras era dia dos 'Pretos Velhos'. A dona do Terreiro, era e continua sendo, Vovó Cambina D'Angola. Era ela quem, em nome de Oxalá [Deus], nos descarregava, aconselhava. Vovó Cambina, como ela mesma dizia, tinha mais de 300 anos que 'deixou' este mundo. Foi escrava e sofreu muito com os seus familiares, também escravizados. Ela incorporava no seu
aparelho ou cavalo [corpo], dona Silvia, esposa de Jorge, o proprietário da casa onde, na grande sala da frente, situava-se o Centro com seu belíssimo Gongá (Altar). Dona Sílvia, tinha aproximadamente 30 anos de idade. Era muito simpática, um tanto gorda, rosto ovalado, branca e de olhos verdes.
Uma certa noite de sexta-feira, na semana de festas no Terreiro, vieram gente de várias partes do Rio de Janeiro: inclusive da Zona Norte, Baixada Fluminense e da longínqua Zona Rural. Naquela noite, os tambores romperiam a madrugada, nas hábeis mãos de Jorge e seu irmão Zezinho.
Quando teve início à sessão e os tambores repicaram, eu já estava no meio do povo, batendo palmas, acompanhando os ritmos e os cânticos. O salão era iluminado por dezenas de velas. Depois da meia-noite, após esperar por mais de uma hora na fila para ser atendido por Vovó Cambina, chegou a minha vez. Ela estava incorporada no seu 'aparelho' que trajava um lindo vestido branco rodado. Um turbante na cabeça, da mesma cor do vestido e vários colares de contas coloridas no pescoço, enfeitavam-lhe o busto. Estava sentada num banquinho.
- Venha fio [filho] formoso - chamou ela, - se chegue pra perto da Nega Veia e sente aí no banquinho.
Eu me aproximei e sentei no banco à sua frente, estendendo-lhe a mão direita.
- À bênção, Vovó Cambina.
Ela respondeu com os dois braços suspensos sobre a minha cabeça e as mãos abertas:
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- Que o grande, bondoso e justo Oxalá lhe abençoe, lhe proteja e lhe guie pelos caminhos adversos, meu fio - após uma pequena pausa, ela perguntou. - O que o fio formoso tá querendo da Vovó? Sunsê [você] tem uma coisa na cabeça pra pedir a Nega Veia, há um bocado de luas. A Vovó tá errada?
Sorri e respondi:
- Estou querendo muito lhe fazer este pedido Vovó; muito mesmo. Mas... como a senhora sabe, se não comentei nada disso pra ninguém!
Agora foi ela quem sorriu, dizendo:
- A Vovó sabe de tudo, fio. De tudo que o fio possa e não possa imaginar.
- Pois é Vovó Cambina: estava querendo aproveitar a noite de hoje, início das comemorações da semana dos 'Pretos Velhos', pra lhe fazer esse pedido que, de pronto, vou logo dizendo: tenho quase certeza de que não sou digno de ser atendido.
- Fio - disse ela, - a Vovó gosta muito de sunsê. Ela vai atender o seu pedido. Pela fé de Oxalá, nosso Pai, que vai: é só pedir.
- Escute Vovó Cambina: há muitos anos que frequento o seu Terreiro e jamais perdi uma sessão. A senhora não imagina o quanto lhe quero, lhe respeito e lhe venero. Só que lhe conheço apenas através da dona Sílvia. Pois eu queria lhe conhecer, fora do seu 'cavalo' seu 'aparelho'. Confesso que queria muito Vovó Cambina. Tenho uma vontade imensa de lhe ver pessoalmente, ou espiritualmente, como a senhora queira se apresentar pra mim. Isso se eu for merecedor desse pedido.
Vovó Cambina riu com seu sorriso inconfundível e disse:
- Então o fio formoso quer conhecer a Nega Veia fora do seu 'aparelho', não é?
- Quero e muito, Vovó Cambina. É um
sonho que quero realizar, desde que comecei a frequentar a sua "casa".
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- Mas o fio num sabe que a Vovó tem mais de 300 anos que sua 'matéria' deixou este mundo?
- Sei, Vovó Cambina.
- E mesmo assim, não vai ter receio de estar frente a frente com ela?
- De jeito nenhum, Vovó Cambina. E digo mais: se a senhora atender o meu pedido, pode dizer as condições e como deverei proceder. Não tenho medo de ir lhe encontrar, seja na mata, em cemitério ou a que horas seja do dia ou da noite. Eu sei que o seu espírito, Vovó Cambina, é uma inesgotável fonte de amor, bondade e que só trabalha para o bem estar das pessoas. Portanto, de uma coisa tenho certeza: se não me fizer o bem, mal a senhora não vai fazer.
Vovó Cambina levantou-se do seu banquinho e eu fiz o mesmo. Em seguida me deu um passe de descarrego, olhou nos meus olhos e disse:
- O Fio é um perna de calça [homem], como se diz aqui na Terra; com um bocado de letras grandes, não é?
Esbocei um sorriso, ela comentou:
- Depois que terminar o baticum [sessão], antes da Vovó subir, ela vai dizer pro fio formoso, como e o que deve fazer para estar, frente a frente com a Nega Veia, Vovó Cambina D’Angola.
Aproximadamente umas três horas da madrugada, Vovó Cambina mandou que eu voltasse a sentar no mesmo banquinho. Feito isso ela falou:
- A Vovó já está de 'partida'. Então escute e grave: semana que vem, à noite, a Nega Veia vai estar de novo aqui com seus fios...
- Sei Vovó: na próxima sexta-feira, tem sessão - ela prosseguiu:
- Uma noite antes...
- Sei, quinta-feira à noite.
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- Pois bem: o fio formoso vai se encontrar com a Nega Veia, à meia-noite, na floresta aí pra cima.
- Sei...
- O fio vai subir caminhando a estrada dos corre corre [veículos], antes dessa hora. Leve três velas brancas e um acendedor virgem de madeira [fósforo]. Não pode ter bebido nada de álcool 24 horas antes. Quando já estiver bem lá pra cima, procure uma árvore bastante grande, de cêpa larga e folhagem frondosa. Depois entre na mata e, de joelhos, acenda com a mão direita, as velas junto do tronco dessa árvore. Feito isso, se benza com a mesma mão que usou o acendedor. Em seguida, bata com o punho fechado da mão direita no tronco por três vezes e chame pelo meu nome. Nessa hora, tem que ser meia-noite em ponto. Os três ponteiros do relógio têm que estar certinhos, um sobre os outros, em cima do número 12. Depois que chamar pelo meu nome, fique de pé e se volte. Eu vou estar atrás de você. Vai ter coragem de fazer isso fio?
Respondi resoluto:
- Ora se vou ter essa coragem, Vovó Cambina: ora se vou! À sua bênção e até quinta-feira à meia-noite.
Na quinta-feira, cerca de vinte 23 horas, eu já estava preparado para subir a estreita estrada asfaltada, Horto - Alto da Boa Vista.
Às 23:30h, toquei pra lá. Quando passei pelo fim de linha do 409, eram 23:35h. A estrada Horto - Alto da Boa Vista, passa pela Vista Chinesa e Mesa do Imperador, mirantes muito conhecidos. Nessa época eu trabalhava como motorista da TV Globo. Quando estava de férias, todas às manhãs, saía em caminhadas matinais e chegava a ir até a Mesa do Imperador. Percorria, somente na subida, de 40 a 50 minutos no trajeto. Quando estava menos disposto, retornava da Vista Chinesa. Cerca de 30 minutos de caminhada. Conhecia aquela parte da Floresta da Tijuca como a palma da minha mão.
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Após passar pelo fim de linha, as casas começaram a escassear, dando lugar ao início da floresta. Logo mais à frente, cheguei na guarita da guarda florestal. Ali, durante o dia, o guarda esticava uma corrente de acostamento a acostamento. Era cobrado um pedágio [hoje extinto, creio] para os veículos que transitavam por ali. À noite, a guarita ficava deserta, porque ninguém era maluco de ficar plantado num local deserto daquele, àquela hora. Passei pela corrente estirada sobre o asfalto e entrei na escuridão. Levava nos bolsos, velas, fósforo e uma lanterna. Até ali, eu estava 100% disposto ao encontro com Vovó Cambina. Mas, quando entrei na escuridão, lembrei de um fato ocorrido a menos de um mês, que fez meu coração, naquele instante, começar a bater meio acelerado e um tanto descompassado.
Como disse; quando estava de férias, quase todas as manhãs, subia por ali, em caminhadas. Sempre levava Kelly, uma cadela vira-lata, que peguei atropelada na Av. Brasil. Durante a madrugada, chovera torrencialmente em toda cidade do Rio de Janeiro. Chuva de derrubar árvores, alagar ruas e o escambau. Mas isso não impediu a minha costumeira caminhada matinal. O temporal fizera uma pausa. Bem antes da Vista Chinesa, após várias curvas fechadas que existem naquela estrada, tinha um veículo de marca TL, parado à direita da pista, quase colado no barranco. TL, para quem não recorda, era um carrinho da Wolks semelhante à Brasília. Só que mais estreito e compridinho. Esse era de cor azul claro. Quando o avistei, a cadela já estava se aproximando da porta do motorista, com o vidro arriado. Ela ficou de pé, apoiando as patas na janela e cheirava freneticamente o interior do carro. Essa cadela tinha esse péssimo defeito. Sempre quando dava uma chegadinha em casa, na hora do trabalho, com uma viatura da TV, Kelly vinha correndo,
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alegre, sacudindo o rabo cotó e apoiava as patas na janela do carro. Sempre reclamava com ela, porque suas unhas arranhavam a pintura do veículo. Mas ela só fazia isso quando era eu que estava ao volante. Do contrário, podia chegar na minha porta, quantos carros chegassem que ela não se movia. Por isso, estranhei a cadela proceder daquela maneira, naquele veículo de estranhos e longe de casa. Gritei: "Desce daí, Kelly. Você vai arranhar o carro dos outros"! Ela, muito obediente, dessa vez relutou em obedecer. Próximo do TL, me abaixei, peguei no chão um pedaço de galho seco e joguei nela. A cadela desceu e correu para perto de mim, muito inquieta, indócil, rosnando. Quando fui me aproximando do carro, olhei em volta da região, procurando o dono. Até que não estranhei muito o carro parado naquele local deserto, porque sempre encontrava veículos estacionados pelos acostamentos, com seus ocupantes fotografando a floresta, caçando borboletas ou mesmo namorando. Não vi ninguém por perto. Passando ao lado do carro, dei, de relance, uma olhada para o seu interior. Apesar do tempo nublado e aquela estrada estreita, praticamente coberta de árvores frondosas, onde quase não chegava a luz do sol, vi um sujeito deitado no banco de trás. Estava com o rosto para cima e para o lado do passageiro. Tinha o corpo estirado no banco e a cabeça ligeiramente curvada para o estômago. O braço esquerdo sobre a barriga e o direito caído para baixo. Quando o vi, diminuí os passos e disse em voz alta, de forma despretensiosa, para o alertar: "Lugarzinho ruim pra se dormir aí, hein gente boa"?! Foi então que, ao olhar bem o seu rosto, parei e 'gelei' por dentro! Ele não dormia: estava inerte, com os olhos desmesuradamente abertos e expressão de pavor! Na sua fronte, um pouco acima da sobrancelha esquerda, tinha um filete de
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sangue e na testa, uns três orifícios que pareciam ser de balas. O homem estava morto. Por alguns segundos, fiquei estático! Por isso a cadela cheirava tanto para dentro do veículo. Era o odor de sangue que atraiu o seu faro. Minha primeira reação, foi zarpar dali o mais depressa que pudesse, por dois motivos. Primeiro: se me pegassem ao lado de um cadáver, praticamente assassinado,
estava ferrado até a medula! Segundo: o meu pavor repentino não era somente devido ao tamanho do problema e do cadáver em si: mas também do, ou dos assassinos que ainda poderiam estar por perto e julgassem que vi alguma coisa. Voltei-me e disparei ladeira abaixo. Os calcanhares batendo nas popas da bunda. A cadela correndo atrás de mim [mais tarde, depois que a polícia técnica fez o levantamento cadavérico, soubemos pelos noticiários, que tudo foi uma 'queima de arquivo' armada por uma gangue do tráfico da Favela da Rocinha].
Botei esses pensamentos negativos pro lado e continuei subindo até que encontrei uma árvore ideal, já perto da Vista Chinesa. Verifiquei no relógio de mostrador luminoso, no pulso: faltavam 5 minutos para a meia-noite. O pior era que, já descansado, o coração não desacelerava. Com a lanterna acesa, entrei no mato e caminhei até o tronco da árvore. Junto dela, me ajoelhei e limpei o chão de folhas secas, para evitar um possível incêndio. Em seguida, enfiei as velas no chão e peguei o fósforo para acendê-las. Minhas mãos tremiam tanto que, sem estar ventando ali naquele matagal, o tremor apagou a chama dos palitos umas três vezes. Juntei vários palitos e os risquei ao mesmo tempo. Aí consegui. Eu tinha a mais absoluta certeza que Vovó Cambina estava atrás de mim. Agora só faltava mesmo me benzer, fechar a mão, bater com o punho no tronco três vezes e chamar pelo nome dela. Em seguida, Levantar-me e olhar para trás.
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Antes de fazer isso, verifiquei novamente o relógio. Faltava um minuto para meia-noite. Esperei com o punho tremendo. Sentia o coração acelerado e uma relativa falta de ar. À medida em que o ponteiro de segundos dava a última volta para passar sobre o número 12, cravando meia-noite, o coração mais disparava! Além do pavor e da lembrança do homem morto no TL, comecei a imaginar como a Vovó Cambina se apresentaria para mim. Seria como uma velhinha escrava, quando ainda em vida? Seria como uma alma, um espírito ou seria um esqueleto? Como aquela entidade bondosa se apresentaria. Como?!! Desisti. Estava na iminência de ter um ataque do coração. Acho que, naquele momento, ele batia umas 200 pancadas por minuto! Soprei e apaguei as velas. Fiquei de pé e afastei-me, de cabeça baixa, clareando a escuridão com a lanterna. Saí da mata, peguei o asfalto e retornei para casa.
Na sexta-feira à noite, os tambores do "Centro de Umbanda de Vovó Cambina D’Angola" repicaram. Lá estava eu entre os presentes, batendo palmas e acompanhando os cânticos. Quando Vovó Cambina 'baixou' na terra, sentou-se num banquinho ao lado do gongá e me chamou:
- Chegue aqui, fio formoso.
Me aproximei sem saber onde enfiava o rosto. Sentei no banco à frente dela e abaixei a cabeça. Ela segurou meu queixo com a mão e me fez encará-la. Olhei fixamente para seu rosto e desabafei em voz alta, para todos presentes ouvirem:
- Eu afrouxei, Vovó Cambina. Esse é o termo certo. Me acovardei! Não sei por que, na subida para o nosso encontro, fui relembrar de um fato ocorrido semanas atrás que...
- Sei fio - interrompeu ela, - o corpo dentro do corre corre.
- Pois é Vovó: eu, juntando tudo, senti medo. O certo é que não fui, em relação a isso, como se diz: um homem com 'H' maiúsculo!
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- Sunsê é esse homem todo sim, fio: sunsê é. Poucos homens aqui na terra, teriam a coragem de chegar onde sunsê chegou. Lá na mata, sunsê não viu o espírito da Nega Veia; mas a Vovó viu sunsê. Eu sempre estive ao seu lado, desde o instante que o fio começou a subida da ladeira da floresta. Quando desistiu, passou a um palmo de distância da Vovó, e novamente lhe acompanhei até quando chegou em casa e foi se deitar, com segurança. Com a fé do grande Oxalá, eu estava lhe protegendo. Nada, mas nada mesmo de ruim, tocaria um fio dos seus cabelos.
Os tambores repicaram. Me abracei à Vovó Cambina D’Angola, na pessoa do seu 'aparelho', dona Sílvia e disse com os olhos úmidos:
- Eu te amo, Vovó Cambina, eu te amo.
Ela me deu um passe e disse:
- Que o grande Oxalá proteja o fio da Nega Veia. Saravá meu Pai.
Naquela noite, o batuque dos tambores do "Centro de Umbanda de Vovó Cambina D’Angola", se espalharam pela madrugada de lua cheia.
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"Este relato verídico é dedicado à Vovó Cambina D´Angola, onde quer que ela esteja. Quem sabe está neste momento, aqui ao meu lado, quando termino de digitar a 'nossa' história.
À benção Vovó Cambina"...