segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

UM CAUSO DE VOVÓ CATARINA

 UM CAUSO DE VOVÓ CATARINA


Pode ser arte de uma ou mais pessoasEra um homem culto, para quem não havia Deus senão a ciência...

Sua arrogância era proporcional...

Igrejas?

- Ora, são templos de idiotas, costuma dizer...

Santos?

- Nada mais são que personagens da mitologia...

Benzedeiras, médiuns, orixás e guias espirituais, pior ainda...

Eram nada mais que mistificações ou crendices próprias dos ignorantes...

A estes não se contentava em menosprezar!

Mas fazia questão de achincalhar, desfazer, humilhar...

Dizendo que se tratava de religião de negros pobres e ignorantes...

A empregada da sua casa, uma negra de meia idade, ouvia esses absurdos...

Observava e mantinha-se calada!

Entendia que o patrão queria provocá-la...

Pois sabia que ela era frequentadora de um templo de Umbanda...

Resignada, a serviçal ouvia aqueles impropérios e baixava a cabeça...

Sabia que não adiantaria argumentar!

Preferia deixar que Olorum e Xangô se encarregassem do assunto...

Quem era ela para julgar?

Mas eis que um dia o filho mais novo do patrão...

Um menino de apenas seis anos, caiu doente, vítima de uma febre ardente...

Os melhores médicos da cidade foram acionados...

E foram unânimes em dizer que desconheciam a origem do problema...

Mas que dificilmente uma criança resistiria àqueles sintomas cada vez mais avassaladores...

Desesperado, o pai preferiu levar o filho para casa...

Se tivesse que morrer, que fosse entre os seus, e não no leito frio de um hospital...

Todos, pais, avós, tios e irmãos estavam ao redor da cama rezando pela saúde do pequeno...

Ao que o pai reclamava, dizendo que se Deus realmente existisse, não permitiria que uma criança sofresse...

Foi nesse momento que a empregada entrou para servir um café aos presentes...

Ao olhar para o menino desacordado, não conseguiu se segurar:

Uma sensação de peso envergou suas costas, as pernas dobraram-se...

Ela deixou cair o bule de café no chão, enquanto todos a olhavam atônitos...

Com a voz diferenciada, carregada com um sotaque oriundo de tempos remotos...

Pediu licença e foi até o menino...

Quase sussurrando, cantou baixinho:

- No pé do morro, na mata virgem

- Dizem que mora um velho lá

- Ele é curador, ele é rezador

- Ele é Xapanã, ele vai te curar

- Atotô...

Mesmo o pai, sempre tão endurecido, calou-se diante daquela canto...

Ainda sussurrando a velha fez uma série de orações quase inaudíveis...

E, por fim, passou a mão pelo rosto do menino, que imediatamente abriu os olhos...

Olhando para o patrão, disse humildemente:

- Vovó Catarina pede desculpa por ter vindo à casa do sinhô sem pedir licença...

- Mas nêga véia não consegue ver um curumim doente da alma e ficar sem fazer nada...

O homem tentou balbuciar alguma coisa, mas não conseguiu, então a velha continuou:

- Nêga véia conhece seu lugar e sabe que os hómi da ciência faz sua parte...

- Mas quando a doença é da alma é nóis que cura...

- Por que meu filho ficou doente?

Perguntou a mãe com a voz embargada!

Quando falta fé numa casa...

- Respondeu a negra...

- A alma de todos enfraquece e os pequenos são os que mais sofrem...

- É dever do pai e da mãe ensinar que existe um Pai Maior...

- E que a prece é o remédio da alma...

- Nesse casuá jogaram o remédio no ralo e ainda riam dele...

- Com licença que nêga véia já falou demais e vai embora...

- E lembrem-se, quem canta reza duas vezes!

Nesse instante, o pomposo homem jogou-se aos pés da negra...

Pedindo perdão e prometendo mudar dali para a frente...

A velha apenas fez uma cruz em sua testa, dizendo que não era preciso pedir perdão a ela...

A cada dia que passou o menino melhorou, até ficar completamente curado...

O respeito e a prece tornaram-se um hábito naquela casa...

E o patrão, antes tão pedante, agora vestia-se de branco uma vez por semana...

E ia ao templo de Umbanda da empregada ajudar a cambonear os pretos velhos...

Aos quais nunca esquecia de saudar dizendo:

- Adorei as Almas!