segunda-feira, 5 de junho de 2023

O Poço dos Fetos.

 O Poço dos Fetos.


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Em nossa humilde Vila o Estado sempre foi ausente. Desde muito cedo aprendemos que na 'Periferia não existe Ideologia', nem classe social. Se está em Vila Independência então é pobre. Nossa Primeira Igreja foi construída pelas mãos da Comunidade. Todos...Católicos, Evangélicos, Espíritas e os Descrentes (assim Dona França benzedêra chamava Ateus e Agnósticos) ajudavam.
Havia um Código de Ética que nos envolvia. Isso facilitava muito numa época em que água encanada e luz elétrica nem existiam para nós. Haviam os poços que ficaram na Caverna d'água, um enorme mina que brotava de um paredão rochoso. A região toda era rica em poços. A água era boa e 'esgotar os poços' virava festa. Todos se envolviam tarefas e as crianças colhiam araças, pitangas, ameixa de morcego, manga peito de moça e cajás para formar uma mesa enorme com pirão de caldo de cascudo, mussum e traíra frita.
O único poço que ninguém usava era o Pocinho. Esse ficava perto do Campinho. Minha mãe me mandava ficar longe de lá pois algumas mulheres bonitas costumavam perambular na beira do poço.
Certo dia, de 'tanto insistir quase nada' Sapão e Junim Pica Pau me convenceram a ficar na borda do poço. Eu era o mais alto do grupo e tinha bigode desde os onze anos.
Como não via perigo em ficar por ali e como as moças estavam lavando roupas e rindo à valer me aproximei e fiquei observando. Quando todos se foram, bem no lugar onde uma jovem chamada Luzia ficou dia todo melancólica e cabisbaixa eu avistei uma coisa. Eu fui até esse lado onde a água era mais turva e estagnada e vi um paninho embrulhando algo. Chamei os outros dois curiosos e com um pedaço de bambu arreganhamos o embrulho que boiava. Sem entender do que se tratava corri para chamar um adulto.
Naquele tempo, final dos idos de 70, eu tinha três guias espirituais e morais: Véi Tito, Seu Antóim Santana e minha madrinha que chamo até hoje de Madinha. Um 'índio véi', um 'preto véi' e 'uma italianona bruta feito um dormente mas bela e sábia como uma Santa'. Fui correndo buscar Dona Maria...Madinha!
Acostumada em acudir meus apelos ela veio correndo e dizendo, braba feito uma loba:
  • Se for bobiça te dou um cachação hein seu peralta. Quando não tá aprontando tá arrumando confusão. Fazendo arte que só!
E ria uma risada gostosa. E os olhinhos azuis miúdos sumiu e dá uma dor na alma lembrar que Deus leva pessoas assim p'ra morar na Eternidade e me deixa aqui enfrentando a Maldade!
  • Corre de volta lá em casa e pega a ripa do varau meu pretinho!
Era eu...quando me chamava assim era um Código. Queria pressa. E gritou p'ros outros dois:
  • Some daqui seus fidazunha. As mães de vocês estão doidas p'ra dar um coça!
Falou em surraera falar em algo Sagrado. As pernas se multiplicavam p'ra chegar em casa rápido. Encontrei com os dois e disseram:
  • Depois conta o que era!
Madinha se precipitou para a beira do poço e Minha 'Madinha' removeu o Feto do Pocinho e pediu que não contássemos aos outros. Desde esse dia nunca mais fui lá perto. Mas numa noite em que uma Lua anêmica e mortiça fez os cachorros da Vila inteira uivarem madrugada afora não teve jeito. Um clarão e gritos de socorro acordaram todos. Gracinha, cujo nome resumia seu semblante, ateou fogo em si mesma com alcool e querosene.
Dizem que ela voou feito uma bola de fogo e se atirou no Pocinho!
Naquele tempo não havia socorro. Foi preciso ir até o Corpo de Bombeiros. Por sorte nosso saudoso vizinho e amigo Gézus era praça e estava de guarda. O Resgate foi assustador. Dava p'ra ver os fiapos de pele e carne chamuscada caindo por ali mesmo.
Parte de nós rezava, o resto olhava sem dizer nada.
Mesmo parecendo morta Gracinha soltou um som que mais parecia o Grito dos Danados no Paraíso Perdido:
  • Aaaaahrgh...aaaargh...
E deixou cair dos braços semicarbonizados um feto. Teve gente que desmaiou, alguns valentões ficaram. Mas nenhum valentim foi capaz de se manter por perto. Eu segurei o braço de Madinha que rezava e me abraçou. Senti seu pulmão segurando um som de dor e tristeza.
Gracinha morreu depois de seis dias de agonia. Pouca gente foi no enterro.
Dez anos depois as coisas começaram.
Mococa, motorista de um abatedouro de porcos que usava água do Pocinho, lavava o caminhão de entrega cedo. Morreu dois anos depois de começar no caminhão 608. Perdeu o controle e caiu numa pinguela. Ficou preso nas ferragens e se afogou nas águas de um valão.
Nego sucedeu Mococa no volante de entregas do frigorífico. Sua morte ainda é alvo de muita polêmica. Encapotou o carro (que ele lavava toda manhã com a água mortal), conseguiu sair dos destroços para ser atropelado seis metros para frente. A cabeça estava pendendo em uma poça. Nossos amigos ainda o socorreram.
Na Hora de sua passagem, por volta de Dez da Noite. Eu, sonolento depois de dez horas de aulas seguidas em pleno sábado. Escuto três batidas na porta da varanda. A varanda de nosso segundo andar fica há quatro metros de altura da Rua. Impossível alguém escalar as paredes por fora. Era o Nego me avisando que ia partir. Gritei e todos em casa acudiram. Disse, com suor na testa:
  • Alguém me chamou!
Meia Noite veio o aviso. Descemos p'ra calçada de Dona Ormy. A Vila inteira estava ali. Dilon, Zequinha e Lele com as mãos na cabeça descreveram o que eu contei sobre o acidente. Foram eles que levantaram o corpo de nosso amigo...irmão e colocaram dentro da viatura.
  • Ele ainda estava vivo quando o colocamos no carro da polícia. Ele estava respirando!
Olhei para eles e desviei o olhar. Sabia que meu amigo veio me avisar. Anos depois ele ainda me seguiria por muitos lugares. E salvaria minha vida em duas ocasiões!
Em 2010 uma garotinha de doze anos descia a ladeira em frente ao Pocinho, perdeu o controle da bicicleta e deu com tudo em uma mureta. Os funcionários do frigorífico tinham lavado a frente toda para retirar o cheiro de fezes suínas e sangue da rua. A menina teve traumatismo craniano, faleceu também!
O Último caso se deu com o primeiro dono do frigorífico: foi assassinado junto com sua amante: ela estava de três meses. Adivinha com que água ele lavava sua caminhonete S10?
O frigorífico trocou de dono. E fabrica alguns dos produtos mais consumidos do Brasil. Não posso afirmar se ainda usam o Pocinho. Ele ainda está lá. Embrenhado no meio do mato. Parece exalar Morte!
CREDITOS : Jin Carlos
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