"Na época só existiam duas maneiras de se lavar a honra de uma mulher, ou com o casamento... Ou com sangue."
"Na época só existiam duas maneiras de se lavar a honra de uma mulher, ou com o casamento... Ou com sangue."
Debruçada no gradil daquele
velho navio, ela segurava o
Frágil papel com as mãos trémulas.
A folha se molhava com as gotas
Caindo sobre ela.
Era a última carta escrita
Pelo homen que ela mais amou.
Espanha, século dezessete.
O nobre Dom Filipi de Córdoba
Ja estava cansado de ficar dentro
Da carruagem, era noite,
Havia viajado por dois dias e uma
Noite, pois vinha de Saragoça.
Ele era um dos remanescentes
do extinto reino de Aragão,
E precisava ir ou a Saragoça com
Frequência para gerenciar
suas posses ou ir a Madrid
para pavonear o maldito
Rei Fernando VI, o famoso Rei louco.
Filipi deu um murro no teto
Da carruagem e gritou:
— Falta muito para Alicante?!
E o cocheiro respondeu que não,
Mas que precisava parar para
Dar descanso aos cavalos.
Assim que pararam, Filipe desceu
Da carruagem para respirar
um pouco de ar fresco,
Mas assim que desceu
ouviu som vindo da mata,
Aquilo eram violas ciganas
Ele sabia.
— Tem algum acampamento cigano por aqui?
O cocheiro fez que sim
E apontou para a tênue iluminação
que vazava por entre as árvores
Ao longe.
Filipe foi para perto daquelas
Árvores, se aproximou devagar
E ficou espiando.
Era uma grande festa cigana,
Havia mais de dez carruagens
Estacionadas ao fundo,
Sinal que havia mais de um
Clã cigano ali.
As mulheres dançavam segundo
Seus costumes, bailavam em
Torno de uma fogueira
Enquanto os homens tocavam
A viola e sanfona.
De repente a musica parou
E o um senhor de barba branca
E reluzentes dentes de ouro
foi para a frente do povo
E disse:
— Irmãos, eu sou Lucero, chefe do clã Tarin. Quero hoje apresentar a todos minhas três filhas, todas na idade de casar. Espero eu fazer bons casamentos para todas elas. No fim na noite retornaremos para nosso acampamento, mas qualquer homem de boa fé pode ir nos procurar.
Nisso três moças foram para
Diante da fogueira.
Filipi ouviu Lucero dizer
O nome de cada uma,
A de vestido azul era Safira,
A de vestido vermelho era Rubí,
E a Cigana de vestido verde era
Esmeralda.
Filipe se impressionou
Com a beleza e os olhos verdes
Tão expressivos de Esmeralda.
Ficou mirando e
Voltou correndo para o cocheiro
E ordenou que ele descobrisse
Onde estavam acampados
Os Ciganos Tarin.
Ele e o cocheiro seguiram
Caminho para a mansão,
Mas no meio da madrugada
O cocheiro bateu na porta
Do quarto de Filipi,
Que prontamente atendeu
Pois não tinha pregado o olho.
O cocheiro lhe informou
o local do acampamento,
E naquela mesma hora
Filipi montou em seu cavalo
E foi até lá.
Era um vale entre dois morros.
Ele desceu do cavalo e observou,
Os dois ciganos responsáveis
pela vigilha haviam caido no
Sono, sentados no chão
e escorados na rodas de uma
Carruagem eles tinham as
Bocas abertas e roncavam.
Filipi caminhou ao redor
do acampamento e encontrou
uma das carruagens
Iluminada por velas no interior,
Olhou pela portinhola mas
Não viu ninguem dentro.
— Está procurando alguém, meu senhor?
Ele quase enfartou pelo susto,
Se virou e deu de cara com
Ela, Esmeralda estava ali
Em pé logo atrás dele.
— E-eu... bem, eu...
— Pelas suas roupas luxuosas imagino que não é um ladrão nem um criminoso. Então o que quer?
Ele se admirou pois
A voz dela fazia jus a beleza,
Era fina mas não aguda,
Suave como o tilintar de prata.
— Eu estive na festa...
— Espiando. Te vi escondido atrás das árvores.
— Eu só estava curioso, desculpe. Eu sou Dom Filipi Castela de Córdoba, chefe da familia mais nobre da região. Sou senhor de muitas terras, inclusive desta onde seu acampamento está alojado.
— Então... veio aqui esta hora da madrugada para nos expulsar de sua terra?
— Não, não de forma alguma.
— Que quer então?
Esmeralda viu mesmo
Na luz fraca das velas que
Vinham de dentro de sua
Carruagem as orelhas
De Filipi ficarem vermelhas.
— Seu pai disse na festa que qualquer homem de boa fé pode ir vir te procurar.
Esmeralda cobriu a boca
Para que sua risada não
Acordasse ninguem.
— Ora, porque está rindo?
Acha que eu não sou um homem de boa fé?
— Você está perambulando sorrateiro pelo acampamento de madrugada, não está? Mas não é só por isso, meu pai disse aquilo se referindo aos homens ciganos, e você é um gadje.
— Gadje?
— Sim, é o nome que se dá para quem não é cigano de sangue.
Eles conversaram muito
Aquela noite, até quando o
Sol despontou suas luzes
no horizonte.
— Agora tens que ir embora, todos se levantam cedo aqui.
— Senhorita, eu gostei muito de ti. Será que eu poderia voltar outra noite para conversarmos?
Esmeralda pensou um pouco,
Mas Filipi era da idade dela,
Tinha lá seus vinte e poucos anos,
Era bonito e não era bruto
Como os outros homens.
— Poderia sim.
Ele sorriu, beijou-lhe a mão
e partiu.
Duas noites se passaram
e ele voltou, e conversaram
Novamente até o sol raiar.
Então passado uma semana
ele a convidou para ir em
Sua mansão.
Esmeralda foi,
E não demorou para que
Os dois vivessem
Luxuriantes noites de amor.
Pelo menos tres madrugadas
Por semana passavam juntos,
E isso durou quase um ano.
Ele lhe deu muitos presentes,
Incluindo um colar de esmeraldas
Polidas e reluzentes tal qual
Os olhos dela.
A paixão era enorme.
Mas houve um periodo em que
A lua de esmeralda não desceu.
Ela esperou mais um pouco
para ter certeza, e um mês
inteiro se passou sem que
O sangue viesse.
Estava gravida.
Então naquela semana
Quando Filipi foi busca-la,
Ela tomou coragem e contou.
Mas a reação dele foi inesperada.
— Eu... eu não tenho nada que ver com isso.
— Com isso? Isso no caso você quer dizer seu filho?
— Eu sou um Córdoba, a minha familia se senta a mão direita do rei desde a fundação da Espanha, somos os remanescentes da nobreza de Aragão. Eu não posso ter um filho com um uma... uma cigana.
— Você fala como se eu fosse uma prostituta ou coisa assim.
— Aos olhos da nobreza você é.
Esmeralda sentiu aquilo
Como uma punhalada no peito.
— Você... você disse que me amava. Eu achei... pensei que íamos nos casar.
Dom Filipe gargalhou.
— Casar? Eu e você? Imagine a cena, a catedral de Barcelona cheia, o Rei sentado em seu trono na galeria, eu ao lado do padre e uma cigana entrando na igreja como noiva! Esmeralda seja realista! Eu nunca poderia sujar o bom nome da minha casa assim.
Ela ficou parada, estática,
Remoendo internamente
Aquelas palavras.
Filipi saiu do quarto
E em instantes retornou
com um baú do tamanho
de uma caixa de sapatos,
Deu nas mãos dela,
Estava muito pesado.
— Ai tem moedas de ouro o suficiente para comprar um palácio. Com esse dinheiro você pode se vivar até a criança nascer, depois a entregue na roda dos enjeitados.
— Por meu filho na roda? Entregar ele para o orfanato? Eu não acredito que está dizendo isto.
— Quer criar a criança? Certo, então... então assim que esse valor acabar me mande uma carta e eu lhe dou mais dinheiro.
Esmeralda segurou o baú,
Olhou para Filipi com ódio
e foi embora, voltou
sozinha e a pé para o acampamento.
De manhã, Lucero acordou
E saiu de sua carruagem para
Se lavar, mas antes viu ao
Longe Esmeralda vindo
Pela estrada.
— Que se passa minha filha? Onde estava? E que baú é esse?
Ela estava com tanto ódio
Que não pensou duas vezes
E contou tudo para o pai.
Pelas leis do clã ela devia
ser expulsa, deixada para trás
e nunca mais mencionada.
Essa era a penalidades para
Uma moça desonrada.
Mas Lucero jamais viraria
As costas para nenhuma de
Suas filhas.
Disse que não a expulsaria,
Mas sim que deviam ir embora
Da região o quanto antes.
Esmeralda pediu ao pai mais
Uma noite apenas, mostrou
O baú com os dobrões
E com a face tomada de fúria
falou.
— Só existe duas maneiras de se lavar a honra de uma mulher, ou é com o casamento... Ou é com sangue.
Lucêro não concordou
Mas disse também que não iria
Impedir Esmeralda de reparar
A sua própria honra.
E ela nem descansou,
Apanhou um cavalo e
Cavalgou para o sul,
A poucas milhas dali havia
Um outro grupo de Ciganos
Acampados em Vinalopó.
Estes Ciganos eram uma
Ramificação da familia Tarin,
Porém conhecidos como
"Las Serpientes".
Eram matadores.
Ela deu a eles o baú de ouro
Inteiro, e escreveu em um
Papel o endereço da mansão.
— Quero que este homem, Dom Filipi de Córdoba, esteja morto antes do sol raiar. E não quero abusar de vocês meus primos, mas antes que a luz dos olhos deles se apague, coloque nas mãos dele o conteúdo deste embrulho e lhe diga que quem mandou fazer isto foi a Cigana Esmeralda.
— Mas o que este homem lhe fez, prima?
Esmeralda passou a mão sobre o ventre.
Não precisava dizer mais nada,
Os ciganos imediatamente se
Enfureceram.
— Ainda esta noite terá sua honra lavada, isso nós garantimos.
Ela deu a eles um pequeno
saquinho de pano,
Depois partiu.
Os Serpientes são homens
De palavra, assim naquela
noite de modo sorrateiro
invadiram a mansão.
Dom Filipi estava na biblioteca,
Sentado a escrivaninha.
Foi de supetão,
Lhe puxaram pelos cabelos,
O derrubaram no chão
e começaram a surra.
Então veio o primeiro
golpe de adaga,
Depois o segundo,
Depois o terceiro.
Na verdade um golpe certeiro
já mataria, a surra e os demais
Golpes foram apenas vontade de matar.
Vazaram a barriga do homem.
— Q-quem são vocês... porque?
Filipe perguntou engasgando
Com o próprio sangue.
Nisto um dos Ciganos se abaixou,
Abriu a mão de Filipe e depositou
Ali o conteúdo do saquinho de pano.
Filipe olhou para a mão
e se viu segurando aquele
colar de esmeraldas que havia
Dado a mais bela das cigana.
Um dos Serpientes disse em voz alta:
— Isto foi a mando da Cigana Esmeralda.
Dom Filipi ficou a agonizar
Mas antes apontou para a
Escrivaninha onde estava
Uma carta que acabara
De escrever.
Pediu que entregassem
A carta a Esmeralda,
E então, ali caido no carpete
da biblioteca ele morreu.
Os ciganos recolheram a carta
E da mesma maneira sorrateira
Que invadiram eles se evadiram.
Mas durante toda a ação
eles não tinham dado conta
De algo muito importante.
Filipi não estava sozinho.
Seu irmão mais novo, um
Garotinho de pouca idade
Havia entrado na biblioteca
um minuto antes,
E quando os Ciganos invadiram
Ele se escondeu atrás da porta.
Por ser apenas um menino
Ele não pode ajudar o irmão.
Porém na manhã seguinte
O chefe da guarda veio saber
Quem havia matado o Nobre
E o menino só lembrou de dizer
"Os assassinos disseram que foi a mando da Cigana Esmeralda"
Todos os guardas
Vasculharam cada
Pedaço de Alicante
Mas não encontram Ninguém.
Nenhum Cigano Tarin estava
Mais em território Espanhol,
Esmeralda e seu clã ja tinham
Embarcado em um navio,
E como tinham pressa de fugir,
Acabaram pegando a primária nau
Que apareceu, e esta era uma
Francesa que tinha como
Destino a tal nova colônia
De Portugal nas Américas,
Um local chamado Brasil.
Mas antes de embarcar
Um dos Serpientes
Entregou Esmeralda a carta.
Quando ja estavam em
Alto mar, Esmeralda foi
Para o convés, desdobrou
O papel e leu.
"Meu amor, te escrevo para pedir perdão. Sei que falei coisas muito duras, mas peço que entenda que tudo dito foi reflexo da minha criação. Depois que tu foi embora me corroí de remorso, pois a amo muito. Pensei bem a respeito e de fato um homem nobre não tem como se casar com uma cigana. Por isto convoquei Murilo, meu irmãozinho mais novo, que tem apenas treze anos, mas já o comuniquei que eu irei abdicar de meu título de nobreza, ele é que será o nobre, farei dele Dom Murilo de Córdoba. Enquanto a nós dois? Tenho uma boa casa em Albaida que herdei de minha mãe, tenho terras lá também. Se aceitar, gostaria de se casasse comigo e viesse para lá, onde poderíamos criar nosso filho com paz e segurança. Por favor meu amor, ao ler esta carta, se estiver disposta a me perdoar, coloque um lenço branco amarrado na porta de sua carruagem para que eu saiba se sou bem vindo. Espero que me perdoe. Com todo o amor do mundo, Filipi."
Esmeralda leu aquilo
E sem conseguir se conter
Chorou, e chorou muito.
Chorou e chorou
Pois o homem que amava
Ela matou.
Mas ja mão havia o que fazer,
Deixou a carta cair na água
Azul do oceano e então
Teve de prosseguir a vida.
Prosseguiu sim,
Mesmo que lembrasse de Filipi
Todos os dias.
Aqui nestas terras
Esmeralda deu a luz
A sua filha, Cigana Eleonora.
Ela se casou com um Cigano
Bom e gentil, nunca o amou
Mas fez isto por amor a menina,
Para que sua filha tivesse pai.
Esmeralda foi uma mulher
Decidida e corajosa.
Mesmo com tudo isto
Ela conseguiu ser feliz
aqui no brasil.
Aprendeu a falar português,
E com muito esforço criou
Eleonor, filha de Filipi,
Mas também mais dois meninos,
Frutos de seu casamento.
Morreu já muito idosa.
Foi enterrada nas terras de
Pernambuco, não se sabe bem
onde, mas seu corpo
Descansou sob a sobra
De um ipê amarelo.
Esmeralda até hoje é uma alma
Ilustre, uma das mais famosas.
Por ter esse caráter diferente
Das dóceis e passivas Ciganas
Ao desencarnar se tornou
Um espírito de Luz
Que sempre vem ajudar
as moças a não passarem
Pelo que ela passou.
Optcha! Alê Arriba! Oriô!
Salve a cigana Esmeralda!
Lendas das Entidades, Arte e texto por Felipe Caprini
Espero que tenham gostado
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